quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A Lei Maria da Penha não foi feita para proteger homens


Uma colega alertou-me sobre uma decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul que aplicou analogicamente uma medida protetiva em favor de um homem, para que sua esposa mantenha-se afastada dele por certa distância. Normalmente, esta decisão poderia ser muito bem elaborada, embora fundamentada por analogia e aplicando a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Conhecida como Lei Maria da Penha. (BRASIL, 2006).
Vamos ao caso em tela. O autor da ação pediu, em sede de liminar, o afastamento da esposa, na qual está se separando judicialmente, a uma distância mínima de 100 (cem) metros, devido ao sofrimento de agressões físicas e verbais praticadas pela ré. Atitude que o expõe a vexame e humilhação. Além das agressões houve ameaças de morte. Tais agressões ocorreram em vários locais, como trabalho do autor, casa própria e na frente do filho, adolescente.

A liminar não foi concedida em primeiro grau sob o fundamento que não haver previsão legal para aplicação da medida protetiva em favor do homem. Isso por permear o direito de liberdade, constitucionalmente protegido, salvo casos previstos em lei. O autor recorreu da decisão com agravo de instrumento com liminar. Nesta feita, o TBMS (ad quem) proferiu decisão favorável ao autor, através do Desembargador Dorival Renato Pavan, membro da 4ª Turma do respectivo Tribunal. (MATO GROSSO DO SUL, 2011).

Na fundamentação o Desembargador disse alguns trechos que transcrevo da notícia:

O relator afirmou que o princípio a ser aplicado para definir a espécie é o da razoabilidade, havido por ele como sendo o adequado, eis que “a inexistência de regra específica que preveja medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direito dos homens (gênero masculino) não é justificativa plausível ao indeferimento de tal pleito, pois, reafirmo, o ordenamento jurídico deve ser interpretado como um todo indissociável e os conflitos de interesses resolvidos através da aplicação de princípios e da interpretação analógica de suas normas”.
Além disso, ponderou que “o agravante relata situação de conflito familiar insustentável que afeta os direitos fundamentais seus e de seu filho adolescente, todos (sic) afetos à dignidade da pessoa humana”, o que o levou a entender que o livre direito de locomoção da esposa deve ser relativizado para inviabilizar que possa ela continuar a praticar atos que se revelam atentatórios a valores relevantes como são os da honra e da dignidade da pessoa humana, passíveis também de proteção, mesmo que pela via eleita e postulada pelo agravante.
[…]
Pavan sustentou na decisão ainda que “a restrição à liberdade de locomoção da agravada não é genérica, mas específica, no sentido de tão-somente manter distância razoável do agravante, para evitar ao menos dois fatos, de extrema gravidade, a saber: a) primeiro, de que a  agravada possa dar continuidade à prática dos atos agressivos e de humilhação que submete o agravante perante sua própria família e colegas de trabalho, ofendendo, com tal ato, sua dignidade;  b) segundo, de que é possível que o autor, sentindo-se menosprezado, humilhado e ofendido, possa revidar à agressão, com prejuízos incalculáveis para o casal e consequências diretas no âmbito da família.”
O desembargador fundou-se no argumento de que “o agravante, ao invés de usar da truculência ou da violência, em revide aos ataques da mulher, vem em juízo e postula tutela jurisdicional condizente com a realidade dos fatos e da situação de ameaça que vem sendo – ao que tudo indica – praticada pela mulher”, razões pelas quais entendeu que “deve ter atendido o seu pedido, sendo mesmo possível que se utilize da medida requerida na inicial, como liminar, sem que isso possa implicar em qualquer cerceamento na liberdade do direito de ir e vir da agravada, que encontrará limite, tão-somente, na ordem judicial restritiva de não aproximação do autor, exatamente para evitar danos maiores tanto a ela mesma quanto ao próprio agravante”.
O Des. Pavan aplicou as disposições da Lei Maria da Penha por analogia e por via inversa, salientando que “sem desconsiderar o fato de que a referida Lei é destinada à proteção da mulher diante dos altos índices de violência doméstica em que na grande maioria dos casos é ela a vítima” realiza-se o princípio da isonomia quando as agressões partem da esposa contra o marido, de forma a proporcionar o deferimento da liminar.

Agora que se vai a análise do caso e as referidas críticas, com a devida vênia.

Primeiro, no início do texto fala em separação judicial. Em termos técnicos, a doutrina e a jurisprudência majoritária já entendem que este instituto cível foi aniquilado com a Emenda Constitucional 66, de 13 de julho de 2010 (EC66), que alterou o artigo 226, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil, passando a vigorar com a seguinte redação: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. Com isto, não cabe mais falar na separação, haja vista que nem prova de culpa de faz mais necessária para a decretação do divórcio. Nem sequer será necessário um lapso para o acontecimento, como previa a Lex anterior (2 anos separados de fato ou 1 ano separado judicialmente). Seria melhor falar em divórcio direto, mesmo que o processo de divórcio tenha começado anteriormente à EC66. Aplicar-se-ia a fungibilidade das ações decorrente de regramento jurídico posterior. (BRASIL, 1988).

Posteriormente se fala se fala em ex-marido. Como ainda não fora dissolvido o casamento, tecnicamente ainda são marido e mulher.

Mas ao caso que tem a ver com o verdadeiro tema é: Pode ser aplicada alguma medida protetiva da Lei Maria da Penha para proteger homem? A resposta há de ser negativa.

Primeiro que a Constituição em seu artigo 226, § 8º prever e assegura à família mecanismos que proíbam a violência no âmbito das relações familiares. Isto de fato é absoluto, mas se permeia através das leis inferiores. Em decorrência da imposição constitucional foram criadas algumas leis específicas para proteger pessoas em estados de vulnerabilidade e que precisam de proteção especial e prioritária.

Em razão do dito acima, foram criadas e promulgadas algumas leis, como: Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso); Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha); entre outras leis, decretos, convenções e tratados internacionais vigentes no país, como a proteção aos deficientes físicos. Todas estas leis são específicas para cada tipo de pessoa. (Lembrando que há ainda a previsão da criação do Estatuto do Jovem, por força da Emenda Constitucional 67 de 2010).

Na Lei Maria da Penha, logo no início, se ver que fora criada para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Mulher, gênero feminino. Logo, esta lei não se aplica para homens, nem mesmo para homossexuais masculinos, travestis ou transexuais que não mudaram sua documentação civil com decisão judicial que imponha a troca de gênero.

Não pode o intérprete querer, ao mero alvedrio, aduzir a proteção de um grupo vulnerável a outro. A Lei Maria da Penha foi criada para proteger as mulheres vítimas de agressões físicas, cada vez mais comuns no Brasil. Em caso de agressões a outros, será aplicados, seja separadamente ou concomitantemente, as proteções cabíveis para cada grupo de vulnerabilidade. Exemplo: Em sendo uma menina, adolescente, aplicasse conjuntamente a Lei Maria da Penha e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Em sendo um homem idoso, aplicasse exclusivamente o Estatuto do Idoso.

No caso específico, trata-se de um homem. Logo, gênero masculino, onde não se aplica uma lei específica para a proteção de mulher. Daí viria uma pergunta: Então foi errada a decisão do Desembargador? O homem teria que continuar sofrendo agressões físicas e verbais da mulher por não haver previsão legal?

Vamos por parte. Primeiro o magistrado de primeiro grau negou o pedido de liminar com fundamento de não haver previsão legal para garantir o pedido realizado pelo autor. Para poder comentar tal decisão, seria mister saber quando foi prolatada a decisão. O site do TBMS tem notícia apenas da decisão do tribunal ad quem datada (a notícia) de 17 de setembro de 2011. Mas não tem como saber a data da decisão a quo.

A data seria de suma importância para avaliarmos os quão atualizados estão os operadores do Direito. Para não ser leviano (embora por se tratar de pedido de liminar e agravo de instrumento para atacar a decisão que denegue a liminar possa dar prazo razoável para a crítica a seguir), pensamos que possa ser anterior à vigência da lei que se fala abaixo.

A Lei 12.403, de 4 de maio de 2011 alterou dispositivos do Código de Processo Penal, especialmente os relacionados à prisão e medidas cautelares e liberdade provisória. A lei entrou em vigor no dia 4 de julho de 2011, devido à vacacio legis de 60 dias.

Daí a pergunta, a decisão do juízo a quo é anterior a referida lei? Pela razoabilidade do tempo, parece que não. Então, dizer que não há previsão legal para aplicar alguma medida cautelar (protetiva) é está desatualizado com as leis vigentes no país.

Veja-se o que dispõe o Código de Processo Penal com a redação dada pela Lei 12.403:

Art. 319.  São medidas cautelares diversas da prisão:
[…]
II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;

Como se pode ver, hodiernamente há previsão legal para o caso tem tela. Poderia sim o magistrado aplicar cautelarmente a proibição da esposa de chegar próximo ao marido e ao filho adolescente (aqui sim se aplicaria uma regra específica, quanto ao filho adolescente). Com isso, aplicando a razoabilidade de manter a esposa a 100 metros de distância, asseguraria a proteção do bem da integridade física e psicológica do requerente. Em caso de descumprimento, pagamento de multa.

Agora em se tratando da decisão do Desembargador é que não se pode ter dúvida da falta técnica, com a devida vênia que cabe a um mero bacharel em Direito. Muito bonita a decisão em falar do princípio da isonomia, aplicação analógica de lei específica, proteção da integridade física, princípio da razoabilidade, a moralidade do autor ajuizar uma ação requerendo proteção jurisdicional e não partir para a violência, como ocorre muito, entre outras fundamentações ditas pelo douto magistrado.

Embora a decisão do magistrado esteja em consonância com a legislação penal e processual penal, a fundamentação parece ter sido errônea. Não se aplica analogia ao alvedrio do entendimento do magistrado. A analogia deve ser aplicada com cautela. O direito à integridade física e outros direitos devem ser protegidos, mas não há como se aplicar lei específica de proteção e um grupo vulnerável para outro grupo. É inadmissível aplicação do Estatuto do Idoso para quem não é idoso ou não guarde consonância com elementos que ligue a devida proteção.

Aplicar a Lei Maria da Penha para proteger um homem não é de bom senso. A Lei Maria da Penha protege a mulher e exclusivamente a ela.

Não quero aqui dizer que o autor da ação não teria direito à proteção legal. Hoje existe a forma, basta ficar atento às mudanças legislativas. Quando se fala da fundamentação ter sido errônea é que não haveria a necessidade de aplicar analogicamente a Lei Maria da Penha para proteger um ser do sexo masculino. O CPP já prever medidas cautelares do mesmo teor legislativo e neste diploma legal não há restrição quanto a gênero, idade, coordenação motora, etc.

O princípio da igualdade é verificado pelo tratamento desigual na medida da desigualdade. Sem falar que é tratamento igual perante a lei. Uma lei que protege um grupo considerado vulnerável não infringe o princípio constitucional. Ao contrário, ratifica, haja vista que os vulneráveis sofrem mais e precisam de maior proteção.


CONCLUSÃO:


A decisão, embora protegendo e garantindo um direito inerente ao ser humano (integridade física e moral), teve sua fundamentação equivocada. Não se aplica a Lei Maria da Penha para proteção de homens, haja vista que a lei específica protege tão exclusivamente seres do sexo feminino.
As medidas cautelares vigentes no Código de Processo Penal aplicar-se-ia tranquilamente ao caso em tela, não havendo necessidade de aplicação analógica.


REFERÊNCIAS:


BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 5 out 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 28 set. 2011.


______. Descreto-Lei nº 3689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 13 ago. 1941. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em: 28 set. 2011.


______. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 08 ago. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 28 set. 2011.


MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul: Portal Poder Judiciário. Liminar proíbe mulher de se aproximar do ex-marido. Campo Grande, 19 set. 2011. Disponível em: <http://tjms.jus.br/noticias/materia.php?cod=20132>. Acesso em: 28 set. 2011.


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Hoje, mais do que nunca, vejo a necessidade dos operadores de Direito se atualizarem com as legislações.
Depois dessa, tem o caso da garota que era estuprada pelo próprio pai e a senhora Delegada disse que não era estupro por não ter ocorrido “conjunção carnal”, mas outros atos libidinosos. Que seria atentado violento ao pudor. Pode ser que o crime tenha ocorrido anteriormente a mudança da lei, mas não há modificação quanto à pena. Muito menos há de se falar mais em atentado violento ao pudor. E pelo caso, parece que, mesmo a primeira vez tendo acontecido antes da modificação legal, que houve atos idênticos posteriormente.

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