Uma colega alertou-me sobre uma decisão do Tribunal de
Justiça do Mato Grosso do Sul que aplicou analogicamente uma medida protetiva em
favor de um homem, para que sua esposa mantenha-se afastada dele por certa distância.
Normalmente, esta decisão poderia ser muito bem elaborada, embora fundamentada
por analogia e aplicando a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, que cria
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a
Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Conhecida como Lei Maria da
Penha. (BRASIL, 2006).
Vamos ao caso em
tela. O autor da ação pediu, em sede de liminar, o
afastamento da esposa, na qual está se separando judicialmente, a uma distância
mínima de 100 (cem) metros, devido ao sofrimento de agressões físicas e verbais
praticadas pela ré. Atitude que o expõe a vexame e humilhação. Além das agressões
houve ameaças de morte. Tais agressões ocorreram em vários locais, como
trabalho do autor, casa própria e na frente do filho, adolescente.
A liminar não foi concedida em primeiro grau sob o
fundamento que não haver previsão legal para aplicação da medida protetiva em
favor do homem. Isso por permear o direito de liberdade, constitucionalmente
protegido, salvo casos previstos em
lei. O autor recorreu da decisão com agravo de instrumento
com liminar. Nesta feita, o TBMS (ad quem)
proferiu decisão favorável ao autor, através do Desembargador Dorival Renato
Pavan, membro da 4ª Turma do respectivo Tribunal. (MATO GROSSO DO SUL, 2011).
Na fundamentação o Desembargador disse alguns trechos que
transcrevo da notícia:
O relator afirmou que o princípio a ser aplicado para
definir a espécie é o da razoabilidade, havido por ele como sendo o adequado,
eis que “a inexistência de regra específica que preveja medida protetiva de não
aproximação destinada ao resguardo dos direito dos homens (gênero masculino)
não é justificativa plausível ao indeferimento de tal pleito, pois, reafirmo, o
ordenamento jurídico deve ser interpretado como um todo indissociável e os
conflitos de interesses resolvidos através da aplicação de princípios e da
interpretação analógica de suas normas”.
Além disso, ponderou que “o agravante relata situação
de conflito familiar insustentável que afeta os direitos fundamentais seus e de
seu filho adolescente, todos (sic) afetos à dignidade da pessoa humana”, o que
o levou a entender que o livre direito de locomoção da esposa deve ser
relativizado para inviabilizar que possa ela continuar a praticar atos que se
revelam atentatórios a valores relevantes como são os da honra e da dignidade
da pessoa humana, passíveis também de proteção, mesmo que pela via eleita e postulada
pelo agravante.
[…]
Pavan sustentou na
decisão ainda que “a restrição à liberdade de locomoção da agravada não é
genérica, mas específica, no sentido de tão-somente manter distância razoável
do agravante, para evitar ao menos dois fatos, de extrema gravidade, a saber:
a) primeiro, de que a agravada possa dar continuidade à prática dos atos
agressivos e de humilhação que submete o agravante perante sua própria família
e colegas de trabalho, ofendendo, com tal ato, sua dignidade; b) segundo,
de que é possível que o autor, sentindo-se menosprezado, humilhado e ofendido,
possa revidar à agressão, com prejuízos incalculáveis para o casal e
consequências diretas no âmbito da família.”
O desembargador
fundou-se no argumento de que “o agravante, ao invés de usar da
truculência ou da violência, em revide aos ataques da mulher, vem em juízo e
postula tutela jurisdicional condizente com a realidade dos fatos e da situação
de ameaça que vem sendo – ao que tudo indica – praticada pela mulher”, razões
pelas quais entendeu que “deve ter atendido o seu pedido, sendo mesmo possível
que se utilize da medida requerida na inicial, como liminar, sem que isso possa
implicar em qualquer cerceamento na liberdade do direito de ir e vir da
agravada, que encontrará limite, tão-somente, na ordem judicial restritiva de
não aproximação do autor, exatamente para evitar danos maiores tanto a ela
mesma quanto ao próprio agravante”.
O Des. Pavan
aplicou as disposições da Lei Maria da Penha por analogia e por via inversa,
salientando que “sem desconsiderar o fato de que a referida Lei é destinada à
proteção da mulher diante dos altos índices de violência doméstica em que na
grande maioria dos casos é ela a vítima” realiza-se o princípio da isonomia
quando as agressões partem da esposa contra o marido, de forma a proporcionar o
deferimento da liminar.
Agora que
se vai a análise do caso e as referidas críticas, com a devida vênia.
Primeiro,
no início do texto fala em separação judicial. Em termos técnicos, a doutrina e
a jurisprudência majoritária já entendem que este instituto cível foi
aniquilado com a Emenda Constitucional 66, de 13 de julho de 2010 (EC66), que
alterou o artigo 226, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil,
passando a vigorar com a seguinte redação: “O casamento civil pode ser
dissolvido pelo divórcio”. Com isto, não cabe mais falar na separação, haja
vista que nem prova de culpa de faz mais necessária para a decretação do divórcio.
Nem sequer será necessário um lapso para o acontecimento, como previa a Lex anterior
(2 anos separados de fato ou 1 ano separado judicialmente). Seria melhor falar
em divórcio direto, mesmo que o processo de divórcio tenha começado
anteriormente à EC66. Aplicar-se-ia a fungibilidade das ações decorrente de regramento
jurídico posterior. (BRASIL, 1988).
Posteriormente
se fala se fala em
ex-marido. Como ainda não fora dissolvido o casamento,
tecnicamente ainda são marido e mulher.
Mas ao caso
que tem a ver com o verdadeiro tema é: Pode ser aplicada alguma medida
protetiva da Lei Maria da Penha para proteger homem? A resposta há de ser
negativa.
Primeiro
que a Constituição em seu artigo 226, § 8º prever e assegura à família
mecanismos que proíbam a violência no âmbito das relações familiares. Isto de
fato é absoluto, mas se permeia através das leis inferiores. Em decorrência da
imposição constitucional foram criadas algumas leis específicas para proteger
pessoas em estados de vulnerabilidade e que precisam de proteção especial e
prioritária.
Em razão do
dito acima, foram criadas e promulgadas algumas leis, como: Lei 8.069, de 13 de
julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); Lei 10.741, de 1º de
outubro de 2003 (Estatuto do Idoso); Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei
Maria da Penha); entre outras leis, decretos, convenções e tratados
internacionais vigentes no país, como a proteção aos deficientes físicos. Todas
estas leis são específicas para cada tipo de pessoa. (Lembrando que há ainda a
previsão da criação do Estatuto do Jovem, por força da Emenda Constitucional 67
de 2010).
Na Lei
Maria da Penha, logo no início, se ver que fora criada para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher. Mulher, gênero feminino. Logo, esta lei não se aplica para
homens, nem mesmo para homossexuais masculinos, travestis ou transexuais que não
mudaram sua documentação civil com decisão judicial que imponha a troca de gênero.
Não pode o
intérprete querer, ao mero alvedrio, aduzir a proteção de um grupo vulnerável a
outro. A Lei Maria da Penha foi criada para proteger as mulheres vítimas de
agressões físicas, cada vez mais comuns no Brasil. Em caso de agressões a
outros, será aplicados, seja separadamente ou concomitantemente, as proteções
cabíveis para cada grupo de vulnerabilidade. Exemplo: Em sendo uma menina,
adolescente, aplicasse conjuntamente a Lei Maria da Penha e o Estatuto da
Criança e do Adolescente. Em sendo um homem idoso, aplicasse exclusivamente o
Estatuto do Idoso.
No caso
específico, trata-se de um homem. Logo, gênero masculino, onde não se aplica
uma lei específica para a proteção de mulher. Daí viria uma pergunta: Então foi
errada a decisão do Desembargador? O homem teria que continuar sofrendo agressões
físicas e verbais da mulher por não haver previsão legal?
Vamos por
parte. Primeiro o magistrado de primeiro grau negou o pedido de liminar com
fundamento de não haver previsão legal para garantir o pedido realizado pelo
autor. Para poder comentar tal decisão, seria mister saber quando foi prolatada a decisão. O site do TBMS tem notícia
apenas da decisão do tribunal ad quem
datada (a notícia) de 17 de setembro de 2011. Mas não tem como saber a data da
decisão a quo.
A data
seria de suma importância para avaliarmos os quão atualizados estão os
operadores do Direito. Para não ser leviano (embora por se tratar de pedido de
liminar e agravo de instrumento para atacar a decisão que denegue a liminar
possa dar prazo razoável para a crítica a seguir), pensamos que possa ser
anterior à vigência da lei que se fala abaixo.
A Lei
12.403, de 4 de maio de 2011 alterou dispositivos do Código de Processo Penal,
especialmente os relacionados à prisão e medidas cautelares e liberdade provisória.
A lei entrou em vigor no dia 4 de julho de 2011, devido à vacacio legis de 60 dias.
Daí a
pergunta, a decisão do juízo a quo é
anterior a referida lei? Pela razoabilidade do tempo, parece que não. Então,
dizer que não há previsão legal para aplicar alguma medida cautelar (protetiva)
é está desatualizado com as leis vigentes no país.
Veja-se o
que dispõe o Código de Processo Penal com a redação dada pela Lei 12.403:
Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:
[…]
II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares
quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado
permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando,
por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela
permanecer distante;
Como se
pode ver, hodiernamente há previsão legal para o caso tem tela. Poderia sim o
magistrado aplicar cautelarmente a proibição da esposa de chegar próximo ao
marido e ao filho adolescente (aqui sim se aplicaria uma regra específica,
quanto ao filho adolescente). Com isso, aplicando a razoabilidade de manter a
esposa a 100 metros
de distância, asseguraria a proteção do bem da integridade física e psicológica
do requerente. Em caso de descumprimento, pagamento de multa.
Agora em se
tratando da decisão do Desembargador é que não se pode ter dúvida da falta técnica,
com a devida vênia que cabe a um mero
bacharel em Direito. Muito
bonita a decisão em falar do princípio da isonomia, aplicação analógica de lei
específica, proteção da integridade física, princípio da razoabilidade, a
moralidade do autor ajuizar uma ação requerendo proteção jurisdicional e não
partir para a violência, como ocorre muito, entre outras fundamentações ditas
pelo douto magistrado.
Embora a
decisão do magistrado esteja em consonância com a legislação penal e processual
penal, a fundamentação parece ter sido errônea. Não se aplica analogia ao
alvedrio do entendimento do magistrado. A analogia deve ser aplicada com
cautela. O direito à integridade física e outros direitos devem ser protegidos,
mas não há como se aplicar lei específica de proteção e um grupo vulnerável
para outro grupo. É inadmissível aplicação do Estatuto do Idoso para quem não é
idoso ou não guarde consonância com elementos que ligue a devida proteção.
Aplicar a
Lei Maria da Penha para proteger um homem não é de bom senso. A Lei Maria da
Penha protege a mulher e exclusivamente a ela.
Não quero
aqui dizer que o autor da ação não teria direito à proteção legal. Hoje existe
a forma, basta ficar atento às mudanças legislativas. Quando se fala da
fundamentação ter sido errônea é que não haveria a necessidade de aplicar
analogicamente a Lei Maria da Penha para proteger um ser do sexo masculino. O CPP
já prever medidas cautelares do mesmo teor legislativo e neste diploma legal
não há restrição quanto a gênero, idade, coordenação motora, etc.
O princípio
da igualdade é verificado pelo tratamento desigual na medida da desigualdade. Sem
falar que é tratamento igual perante a lei. Uma lei que protege um grupo
considerado vulnerável não infringe o princípio constitucional. Ao contrário,
ratifica, haja vista que os vulneráveis sofrem mais e precisam de maior proteção.
CONCLUSÃO:
A decisão,
embora protegendo e garantindo um direito inerente ao ser humano (integridade física
e moral), teve sua fundamentação equivocada. Não se aplica a Lei Maria da Penha
para proteção de homens, haja vista que a lei específica protege tão
exclusivamente seres do sexo feminino.
As medidas
cautelares vigentes no Código de Processo Penal aplicar-se-ia tranquilamente ao
caso em tela, não havendo necessidade de aplicação analógica.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil.
Brasília, DF, 5 out 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>.
Acesso em: 28 set. 2011.
______. Descreto-Lei
nº 3689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.
Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil. Brasília, DF, 13 ago. 1941.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>.
Acesso em: 28 set. 2011.
______. Lei
nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do
art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação
dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código
de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
providências. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília,
DF, 08 ago. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>.
Acesso em: 28 set. 2011.
MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul: Portal Poder Judiciário.
Liminar proíbe mulher de se aproximar do ex-marido. Campo Grande, 19 set. 2011.
Disponível em: <http://tjms.jus.br/noticias/materia.php?cod=20132>.
Acesso em: 28 set. 2011.
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Hoje, mais do que nunca, vejo a necessidade dos
operadores de Direito se atualizarem com as legislações.
Depois dessa, tem o caso da garota que era
estuprada pelo próprio pai e a senhora Delegada disse que não era estupro por não
ter ocorrido “conjunção carnal”, mas outros atos libidinosos. Que seria
atentado violento ao pudor. Pode ser que o crime tenha ocorrido anteriormente a
mudança da lei, mas não há modificação quanto à pena. Muito menos há de se
falar mais em atentado violento ao pudor. E pelo caso, parece que, mesmo a
primeira vez tendo acontecido antes da modificação legal, que houve atos
idênticos posteriormente.
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