Ontem
no Jornal Hoje, transmitido pela Rede Globo de Televisão, uma jovem de 18 anos relatou
os abusos sexuais que sofria do próprio pai enquanto tinha 8 a 16 anos de idade. A jovem é
estudante de direito e só tomou a atitude após saber que o mesmo também abusara
sexualmente outras pessoas, como uma sobrinha e uma cunhada do suposto
agressor, que é advogado e já pertenceu a Comissão de Direitos Humanos da Ordem
dos Advogados do Brasil.
Como
acontece com vários casos silimares, a filha teria avisado a genitora, que nada
fez.
A
Delegada que investiga o caso pediu a prisão temporária e uma medida protetiva para
afastar o suspeito da filha. A prisão temporária foi negada. A medida protetiva
foi determinada, impondo ao suspeito a distância mínima de 100 metros da filha. Também
foi determinada a busca e apreensão de computadores e outros objetos do
suspeito.
Não
estou aqui para fazer o julgamento, nem me predispor a falar do caso em si,
pois não sou policial, muito menos juiz para falar sobre isso. Nem posso ser
leviano a ponto de condenar uma pessoal por suposto fato como de fato faz a mídia
deste país, que condena uma pessoa sem nem haver processo para julgá-lo. Todos são
inocentes até que se prove o contrário. Então, que a polícia faça um bom
serviço investigativo e que o Ministério Público e o Magistrado encarregados
possam fazer seus trabalhos dignamente. Caso entendam que ele é culpado, e que
consigam comprovar, que ele seja punido. No caso de não conseguirem provar, que
ele seja absolvido. Simples assim.
O
fato que me fez escrever o texto é sobre as informações dadas em várias
emissoras de televisão, sites, rádios, etc. Nas matérias fora dito que o
acusado não poderia ser enquadrado por estupro, pois não houve conjunção
carnal, mas outros atos libidinosos diversos da conjunção carnal.
Tal
fato causou estranheza aos operadores do Direito, pois o crime de atentado
violento ao pudor não existe mais no ordenamento jurídico. Este fora revogado
pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Daí veio a série de confusões
cognitivas devido às informações editadas e mal passadas pela pessoa de direito
e pelas encarregadas de passar a informação.
Como
dito acima, a jovem hoje se encontra com 18 anos e alega que fora abusada
sexualmente entre os 8 e 16 anos. Logo, os fatos deixaram de acontecer com a
mesma a cerca de 2 anos. O problema é, a Lei 12.015/2009 tem pouco mais de 2
anos. Com isso, houve atos após a mudança ou não?
Se
foram praticados todos os atos da continuidade delitiva anteriormente a modificação
legal, de fato o crime seria o de atentado violento ao pudor. Mas este deixou
de existir. Como fica então se houve a “abolitio
criminis”? Este foi o pensamento da maioria dos operadores do Direito que
ainda não tem o conhecimento de algumas decisões das cortes especiais do país.
Se
houve continuidade delitiva após a mudança da lei, já poderia se falar logo em
estupro. (Entendo eu, que mesmo que todos os acontecimentos tivessem
acontecidos na vigência da redação anterior da lei, a força policial que
investiga o caso já poderia falar que os atos caracterizam estupro, de acordo
com a lei vigente hodiernamente).
Primeiro
vamos falar dos crimes em
si. Antes da entrada em vigor da Lei 12.015/2009 o estupro
era previsto da seguinte forma: “Constranger mulher à conjunção carnal. Mediante
violência ou grave ameaça”. Já o atentado violento ao pudor era da seguinte
forma: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou
permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Para
ambos os crimes a pena era a mesma, “reclusão, de 6 a 10 anos”.
Como
se pode perceber, somente mulher poderia ser vítima de estupro. Já atentado
violento ao pudor, qualquer pessoa poderia sofrer. Enquanto no estupro a
elementar era conjunção carnal (membro sexual masculino penetrando em membro sexual
feminino), no atentado violento ao pudor a elementar era a prática de outros
atos libidinosos diversos da conjunção carnal (utilização de outros locais que
não foram feitos exatamente para relação sexual, mas que humanos utilizam como
se fosse).
Dizem
que a mudança da lei ocorreu para acabar com as mistificações e confusão da
sociedade, que achava que todo abuso sexual era estupro. Ou até para dizer que
homem pode sofrer estupro. No caso, homem poderia sofrer abuso sexual, mas não
estupro, já que este crime tinha como elementar a vítima do sexo feminino (quem
quiser que me prove que algum homem sendo gravemente ameaçado, tendo seu psicológico
abalado, consiga ter conjunção carnal. Vale dizer, consiga fazer seu órgão
sexual ficar ereto). Mas hoje homem pode sofrer estupro (entendo que não há
como ser na conjunção carnal, mas somente com outros atos libidinosos. Todavia,
isso não vem ao caso)
Voltando
ao tema. Com a entrada em vigor, o crime de atentado violento ao pudor não
existe mais. Porém, o crime de estupro teve sua redação modificada, acoplando o
antigo estupro com o antigo atentado violento ao pudor. Hodiernamente vigora
com esta redação: “Constranger alguém, mediante
violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que
com ele se pratique outro ato libidinoso”. A pena continuou de 6 a 10 anos com regime de
reclusão.
O legislador só facilitou. Agora tanto homem quanto mulher pode
sofrer estupro. Para caracterização do crime pouco importa que seja conjunção
carnal ou outros atos libidinosos.
A doutrina diverge num ponto, se o indivíduo comete o crime com
conjunção carnal e outros atos libidinosos se serão “dois crimes”. Uns acham
que só pode ser punido por um crime. Outros falam que como são atos distintos,
há continuidade delitiva. Não sou ninguém para falar quem está certo, ou quem
está errado. Sou um reles bacharel em Direito recém-formado. Mas minha humilde
opinião é a de que só poderá ser punido por um único fato, ainda que seja
praticado com conjunção carnal e outros atos libidinosos, haja vista que ambos
são elementares de um único crime. Com a vigência da lei anterior poderia e
deveria ser entendido como continuidade delitiva.
Mas o que importa mesmo é saber se houve abolitio criminis, se não há como punir o cidadão no caso de
comprovação do crime e se ele será beneficiado de alguma forma (benefício pela
modificação da lei, não benefícios de sua profissão e das mazelas das
investigações e corrupção do país que pode ocorrer).
Posso lhes afirmar que não houve abolitio criminis. O crime de atentado violento ao pudor não existe
mais. Todavia, as elementares típicas do crime estão previstas em outro crime. Houve
mera alteração normativa. Não há mais que se falar em atentado violento ao
pudor, mas sim, em estupro.
Poderia se pensar assim: o crime, a época em que fora cometido
tinha a denominação de atentado violento ao pudor, hoje inexistente. O fato foi
punido e supervenientemente fora modificada a legislação. Não será mais punido?
Será sim. Mas apenas mudando a nomenclatura do delito, que agora é estupro. Na
mesma lógica segue em casos ocorridos anteriormente e somente investigados após
a vigência da nova redação legal.
Neste caso, há a aplicada do Princípio da Continuidade Normativo-Típica,
aplicado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em alguns casos concretos, como no
caso em que pediram habeas corpus por
entenderem que o crime de rapto inexiste e assim seria aplicado a abolitio criminis. A Corte entendeu que
as elementares do crime passou a caracterizar outro crime, o de sequestro ou cárcere
privado qualificado (art. 148, § 1º, V do Código Penal).
Vejamos a decisão que consta no informativo por completo:
A 2ª Turma indeferiu habeas
corpus impetrado em favor de condenado pela prática do crime de rapto (CP, art.
219). A defesa sustentava a ocorrência de abolitio criminis, em razão da
superveniência da Lei 11.106/2005, que revogou os artigos 219 a 222 do CP, e pleiteava
a conseqüente extinção da pretensão executória. Aduziu-se que, muito embora o referido dispositivo tenha sido revogado
com o advento da supracitada lei, a restrição da liberdade com finalidade
libidinosa teria passado a figurar — a partir da entrada em vigor desta
mesma norma — entre as possibilidades de qualificação dos crimes de
seqüestro ou cárcere privado (CP, art. 148, § 1º, V). Reputou-se que a
mera alteração da norma, portanto, não haveria de ser entendida como abolitio
criminis, por ter havido continuidade normativa acerca do tipo penal.
HC101035/RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, 26.10.2010. (HC-101035) (informativo 606
- 2ª Turma)
Como se pode ver, o caso é similar. Embora o crime de atentado
violento ao pudor tenha sido revogado pela Lei 12.015/2009, o crime agora tem
outra denominação, o de estupro. Esta denominação nova ocorreu na própria lei,
sendo idêntico ao caso julgado pela Corte Máxima do país no exemplo
supracitado.
E não haverá benefícios para o suspeito, em caso de condenação,
pois o crime continua existindo e a pena e o regime continuam os mesmos. Aliás,
já eram as mesmas penas na vigência anterior a Lei 12.015/2009. Caso a pena do
crime vigente fosse menor que o da redação anterior do crime revogado, deveria
ser aplicada a pena menor, em respeito aos princípios norteadores do Direito na
aplicação na norma mais benéfica. No caso da pena maior com a redação nova,
aplicar-se-ia a menos gravosa também.
CONCLUSÃO
Quando há revogação de um tipo penal, mas as suas elementares que
tipificavam o crime passam ou continuam a fazer parte de outra tipificadora
criminal, não há abolitio criminis,
mas aplica-se o princípio da Continuidade Normativo-Típico aplicado em casos
concretos pelo STF.
Embora se fale em atentado violento ao pudor no caso em concreto,
devido os fatos terem ocorridos na vigência anterior a Lei 12.015/2009, hoje se
aplicaria normalmente como crime de estupro, não devendo persistir o equívoco
de que uma mera nomenclatura de um delito revogado possa gerar impunidade dos
fatos ocorridos e que ainda continuam sendo crime. Não é como no caso de adultério,
que deixou se ser crime e que os elementos que caracterizavam não permitem a
acusação por outro crime vigente no país.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Descreto-Lei nº 2848,
de 7 de dezembro de 1940. Código de Processo Penal. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil. Brasília,
DF, 31 dez.. 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>.
Acesso em: 29 set. 2011.
______. Supremo Tribunal
Federal. HC101035/RJ. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Distrito
Federal, 25 a
29 out. 2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo606.htm
>. Acesso em: 29 set. 2011
NOTAPAJOS.COM. Filha denuncia pai, advogado, por abuso
sexual. [Rio de Janeiro]: G1/Globo/Notapajos, 2011. Disponível em <http://notapajos.globo.com/lernoticias.asp?id=44335¬icia=Filha%20denuncia%20pai,%20advogado,%20por%20abuso%20sexual>.
Acesso em: 29 set. 2011.
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