quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Atentado violento ao pudor e "abolitio criminis"


Ontem no Jornal Hoje, transmitido pela Rede Globo de Televisão, uma jovem de 18 anos relatou os abusos sexuais que sofria do próprio pai enquanto tinha 8 a 16 anos de idade. A jovem é estudante de direito e só tomou a atitude após saber que o mesmo também abusara sexualmente outras pessoas, como uma sobrinha e uma cunhada do suposto agressor, que é advogado e já pertenceu a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil.

Como acontece com vários casos silimares, a filha teria avisado a genitora, que nada fez.

A Delegada que investiga o caso pediu a prisão temporária e uma medida protetiva para afastar o suspeito da filha. A prisão temporária foi negada. A medida protetiva foi determinada, impondo ao suspeito a distância mínima de 100 metros da filha. Também foi determinada a busca e apreensão de computadores e outros objetos do suspeito.

Não estou aqui para fazer o julgamento, nem me predispor a falar do caso em si, pois não sou policial, muito menos juiz para falar sobre isso. Nem posso ser leviano a ponto de condenar uma pessoal por suposto fato como de fato faz a mídia deste país, que condena uma pessoa sem nem haver processo para julgá-lo. Todos são inocentes até que se prove o contrário. Então, que a polícia faça um bom serviço investigativo e que o Ministério Público e o Magistrado encarregados possam fazer seus trabalhos dignamente. Caso entendam que ele é culpado, e que consigam comprovar, que ele seja punido. No caso de não conseguirem provar, que ele seja absolvido. Simples assim.

O fato que me fez escrever o texto é sobre as informações dadas em várias emissoras de televisão, sites, rádios, etc. Nas matérias fora dito que o acusado não poderia ser enquadrado por estupro, pois não houve conjunção carnal, mas outros atos libidinosos diversos da conjunção carnal.

Tal fato causou estranheza aos operadores do Direito, pois o crime de atentado violento ao pudor não existe mais no ordenamento jurídico. Este fora revogado pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Daí veio a série de confusões cognitivas devido às informações editadas e mal passadas pela pessoa de direito e pelas encarregadas de passar a informação.

Como dito acima, a jovem hoje se encontra com 18 anos e alega que fora abusada sexualmente entre os 8 e 16 anos. Logo, os fatos deixaram de acontecer com a mesma a cerca de 2 anos. O problema é, a Lei 12.015/2009 tem pouco mais de 2 anos. Com isso, houve atos após a mudança ou não?

Se foram praticados todos os atos da continuidade delitiva anteriormente a modificação legal, de fato o crime seria o de atentado violento ao pudor. Mas este deixou de existir. Como fica então se houve a “abolitio criminis”? Este foi o pensamento da maioria dos operadores do Direito que ainda não tem o conhecimento de algumas decisões das cortes especiais do país.

Se houve continuidade delitiva após a mudança da lei, já poderia se falar logo em estupro. (Entendo eu, que mesmo que todos os acontecimentos tivessem acontecidos na vigência da redação anterior da lei, a força policial que investiga o caso já poderia falar que os atos caracterizam estupro, de acordo com a lei vigente hodiernamente).

Primeiro vamos falar dos crimes em si. Antes da entrada em vigor da Lei 12.015/2009 o estupro era previsto da seguinte forma: “Constranger mulher à conjunção carnal. Mediante violência ou grave ameaça”. Já o atentado violento ao pudor era da seguinte forma: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Para ambos os crimes a pena era a mesma, “reclusão, de 6 a 10 anos”.

Como se pode perceber, somente mulher poderia ser vítima de estupro. Já atentado violento ao pudor, qualquer pessoa poderia sofrer. Enquanto no estupro a elementar era conjunção carnal (membro sexual masculino penetrando em membro sexual feminino), no atentado violento ao pudor a elementar era a prática de outros atos libidinosos diversos da conjunção carnal (utilização de outros locais que não foram feitos exatamente para relação sexual, mas que humanos utilizam como se fosse).

Dizem que a mudança da lei ocorreu para acabar com as mistificações e confusão da sociedade, que achava que todo abuso sexual era estupro. Ou até para dizer que homem pode sofrer estupro. No caso, homem poderia sofrer abuso sexual, mas não estupro, já que este crime tinha como elementar a vítima do sexo feminino (quem quiser que me prove que algum homem sendo gravemente ameaçado, tendo seu psicológico abalado, consiga ter conjunção carnal. Vale dizer, consiga fazer seu órgão sexual ficar ereto). Mas hoje homem pode sofrer estupro (entendo que não há como ser na conjunção carnal, mas somente com outros atos libidinosos. Todavia, isso não vem ao caso)

Voltando ao tema. Com a entrada em vigor, o crime de atentado violento ao pudor não existe mais. Porém, o crime de estupro teve sua redação modificada, acoplando o antigo estupro com o antigo atentado violento ao pudor. Hodiernamente vigora com esta redação: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A pena continuou de 6 a 10 anos com regime de reclusão.

O legislador só facilitou. Agora tanto homem quanto mulher pode sofrer estupro. Para caracterização do crime pouco importa que seja conjunção carnal ou outros atos libidinosos.

A doutrina diverge num ponto, se o indivíduo comete o crime com conjunção carnal e outros atos libidinosos se serão “dois crimes”. Uns acham que só pode ser punido por um crime. Outros falam que como são atos distintos, há continuidade delitiva. Não sou ninguém para falar quem está certo, ou quem está errado. Sou um reles bacharel em Direito recém-formado. Mas minha humilde opinião é a de que só poderá ser punido por um único fato, ainda que seja praticado com conjunção carnal e outros atos libidinosos, haja vista que ambos são elementares de um único crime. Com a vigência da lei anterior poderia e deveria ser entendido como continuidade delitiva.

Mas o que importa mesmo é saber se houve abolitio criminis, se não há como punir o cidadão no caso de comprovação do crime e se ele será beneficiado de alguma forma (benefício pela modificação da lei, não benefícios de sua profissão e das mazelas das investigações e corrupção do país que pode ocorrer).

Posso lhes afirmar que não houve abolitio criminis. O crime de atentado violento ao pudor não existe mais. Todavia, as elementares típicas do crime estão previstas em outro crime. Houve mera alteração normativa. Não há mais que se falar em atentado violento ao pudor, mas sim, em estupro.

Poderia se pensar assim: o crime, a época em que fora cometido tinha a denominação de atentado violento ao pudor, hoje inexistente. O fato foi punido e supervenientemente fora modificada a legislação. Não será mais punido? Será sim. Mas apenas mudando a nomenclatura do delito, que agora é estupro. Na mesma lógica segue em casos ocorridos anteriormente e somente investigados após a vigência da nova redação legal.

Neste caso, há a aplicada do Princípio da Continuidade Normativo-Típica, aplicado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em alguns casos concretos, como no caso em que pediram habeas corpus por entenderem que o crime de rapto inexiste e assim seria aplicado a abolitio criminis. A Corte entendeu que as elementares do crime passou a caracterizar outro crime, o de sequestro ou cárcere privado qualificado (art. 148, § 1º, V do Código Penal).

Vejamos a decisão que consta no informativo por completo:

A 2ª Turma indeferiu habeas corpus impetrado em favor de condenado pela prática do crime de rapto (CP, art. 219). A defesa sustentava a ocorrência de abolitio criminis, em razão da superveniência da Lei 11.106/2005, que revogou os artigos 219 a 222 do CP, e pleiteava a conseqüente extinção da pretensão executória. Aduziu-se que, muito embora o referido dispositivo tenha sido revogado com o advento da supracitada lei, a restrição da liberdade com finalidade libidinosa teria passado a figurar — a partir da entrada em vigor desta mesma norma — entre as possibilidades de qualificação dos crimes de seqüestro ou cárcere privado (CP, art. 148, § 1º, V). Reputou-se que a mera alteração da norma, portanto, não haveria de ser entendida como abolitio criminis, por ter havido continuidade normativa acerca do tipo penal. HC101035/RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, 26.10.2010. (HC-101035) (informativo 606 - 2ª Turma)

Como se pode ver, o caso é similar. Embora o crime de atentado violento ao pudor tenha sido revogado pela Lei 12.015/2009, o crime agora tem outra denominação, o de estupro. Esta denominação nova ocorreu na própria lei, sendo idêntico ao caso julgado pela Corte Máxima do país no exemplo supracitado.

E não haverá benefícios para o suspeito, em caso de condenação, pois o crime continua existindo e a pena e o regime continuam os mesmos. Aliás, já eram as mesmas penas na vigência anterior a Lei 12.015/2009. Caso a pena do crime vigente fosse menor que o da redação anterior do crime revogado, deveria ser aplicada a pena menor, em respeito aos princípios norteadores do Direito na aplicação na norma mais benéfica. No caso da pena maior com a redação nova, aplicar-se-ia a menos gravosa também.


CONCLUSÃO


Quando há revogação de um tipo penal, mas as suas elementares que tipificavam o crime passam ou continuam a fazer parte de outra tipificadora criminal, não há abolitio criminis, mas aplica-se o princípio da Continuidade Normativo-Típico aplicado em casos concretos pelo STF.
Embora se fale em atentado violento ao pudor no caso em concreto, devido os fatos terem ocorridos na vigência anterior a Lei 12.015/2009, hoje se aplicaria normalmente como crime de estupro, não devendo persistir o equívoco de que uma mera nomenclatura de um delito revogado possa gerar impunidade dos fatos ocorridos e que ainda continuam sendo crime. Não é como no caso de adultério, que deixou se ser crime e que os elementos que caracterizavam não permitem a acusação por outro crime vigente no país.


REFERÊNCIAS


BRASIL. Descreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940. Código de Processo Penal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 31 dez.. 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>. Acesso em: 29 set. 2011.


______. Supremo Tribunal Federal. HC101035/RJ. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Distrito Federal, 25 a 29 out. 2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo606.htm >. Acesso em: 29 set. 2011

NOTAPAJOS.COM. Filha denuncia pai, advogado, por abuso sexual. [Rio de Janeiro]: G1/Globo/Notapajos, 2011. Disponível em <http://notapajos.globo.com/lernoticias.asp?id=44335&noticia=Filha%20denuncia%20pai,%20advogado,%20por%20abuso%20sexual>. Acesso em: 29 set. 2011.

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