A INCONSTITUCIONALIDADE DO TRATAMENTO DADO À UNIÃO ESTÁVEL NA SUCESSÃO
Está em trâmite no Superior Tribunal de Justiça (STJ) um
Recurso Especial com argüição de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código
Civil (CC), que versa sobre a sucessão nas famílias instituídas por união
estável. O tema me chamou a atenção por ter sido o mesmo da monografia
defendida para conclusão da graduação em Direito. (STJ, Arguição de
Inconstitucionalidade no processo eletrônico REsp. 1.135.354 / PB – Número de
Registro 2009/0160051-5, Ministro relator Luis Felipe Salomão).
Quando tive o pensamento de escrever acerca do tema, a
unanimidade dos professores da faculdade era contrária ao meu pensamento, mesmo
assim dois professores aceitaram o desafio em orientar-me, embora mostrando
alguns pontos na tentativa de me convencer da mera constitucionalidade do
dispositivo. Porém, há discordância doutrinária e jurisprudencial do tratamento
diferenciado da união estável e do casamento para efeitos da sucessão
hereditária.
Como volta a baila o tema, sentir-me na necessidade de
externar a minha humilde opinião, da qual já se tem um voto favorável, a do
Ministro Relator Luis Felipe Salomão. A última notícia é a de que o processo
encontra-se interrompido devido ao pedido de vistas do Ministro Cesar Asfor Rocha
(BRASIL, 2011).
Um ponto interessante a ser dito é que a ação só poderá
julgar acerca dos incisos III e IV do art. 1.790 CC. O motivo disto é que em
sede de controle de inconstitucionalidade incidental, deve ter atenção
exclusivamente ao caso concreto, não podendo ultrapassar os limites do que se
pretende na ação. No caso em tela a ação versa sobre a volta dos parentes
colaterais à sucessão do de cujus,
assim como da totalidade da herança, em não havendo “parentes suscetíveis” se
atrelar ao caput ou não do
dispositivo legal.
Dito sobre o processo, faz mister a transcrição do
dispositivo cível:
Art. 1.790. A companheira
ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos
onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com
filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída
ao filho;
II - se concorrer com
descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada
um daqueles;
III - se concorrer com
outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes
sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. (BRASIL, 2002).
Necessária também a transcrição do artigo a qual se requer a
comparação e equiparação das famílias:
Art. 1.829. A sucessão
legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em
concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no
regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art.
1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da
herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em
concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge
sobrevivente;
IV - aos colaterais.
Primeiramente, vale salientar da existência de alguns
princípios atinentes a seara familiar e sucessória, tais como: princípio da
igualdade e respeito à diferença (entre as pessoas e entre as entidades
familiares), princípio da liberdade (inclusive na escolha de entidade familiar
que queiram conviver), princípio da dignidade da pessoa humana, princípio do
pluralismo das entidades familiares, princípio da afetividade, princípio da
razoabilidade, princípio da proporcionalidade, entre outros.
O Ministro relator, em primeiro plano, destaca a falta de
técnica legislativa logo no caput do
art. 1.790 CC, visto que só quem “participa da sucessão” é “herdeiro”. Aqui me
utilizo a devida vênia para ressaltar
um ponto, em tese isto é verdade, mas há um caso específico em que o Poder
Público não é herdeiro, mas poderá entrar na sucessão. Trata-se da herança vacante e da herança jacente, por consequência.
Ainda com relação ao artigo, o Ministro relator é categórico
em afirmar que a topologia está inadequada, pois o dispositivo legal
encontra-se em local impróprio, não tendo nada a ver com as disposições gerais
em matéria sucessória. Neste mesmo sentido encontra-se Cahali (2007, p.
180-181), que leciona que o local mais apropriado a tecer sobre o assunto seria
o da vocação hereditária, já que interfere na ordem das sucessões. No mesmo
sentido Hironaka (2010, p. 58-59), que ainda informa que a má colocação do
referido dispositivo não coaduna nem mesmo com a estrutura do próprio Código
Civil.
Em caráter analítico, o Código Civil de 2002 derrogou alguns
dispositivos das Leis nº 8.971, de 29 de dezembro de 1994 e nº 9.278, de 10 de
maio de 1996, ambas disciplinando o instituto da união estável e
co-relacionados. Nestas derrogações, alguns autores teceram verdadeiras
críticas, tais como Dantas Júnior (2004, p. 581-582), haja vista o “inaceitável
retrocesso à legislação anterior”.
Na ocasião da monografia, ainda por desconhecimento de
alguns pontos do mundo jurídico, não me atentei para o que o Ministro relator
conduziu acerca deste retrocesso. Eis que se trata de um retrocesso em matéria
de direito fundamental. Muito bem lembrado pelo Ministro sobre o efeito cliquet, também conhecido como
princípio da vedação do retrocesso em matéria de direitos fundamentais (ou mais
adequadamente, em matéria de direitos humanos, que não se confunde, nem se
resume aos direitos fundamentais).
No tocante a comparação entre a sucessão dos companheiros em
relação à dos casados, segundo a doutrina majoritária, quem participa da meação
não herda (isso serve apenas para os casados). Porém, na união estável, como a
parte em que o companheiro pode herdar está atrelada aos bens adquiridos a
título onerosos na vigência da união, este teria direito à meação e também
herdaria. O que, analisando uma situação idêntica com cônjuges, quem vive em
união estável teria vantagem quando só há patrimônio comum.
Mesmo a decisão tendo que se ater ao caput e aos incisos III e IV do artigo 1.790 CC, fora relatado no
voto do Ministro relator a incongruência dos incisos I e II que versam da forma
em que o companheiro ou a companheira herdará em concorrência com os filhos e
descendentes do de cujus.
Neste ponte vale a transcrição do voto do Ministro Relator
Luis Felipe Salomão:
Indaga-se
da legitimidade da diferenciação do quinhão que tocaria ao companheiro, a
depender se concorrente com filhos comuns do casal ou com filhos unicamente do de cujus (art. 1.790, incisos I e II).
Concorrendo com filhos comuns o companheiro terá direito à quota equivalente a
que fizer jus o filho (inciso I); “se concorrer com descendentes só do autor da
herança tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles” (inciso II). Não
há solução dada pelo legislador, todavia, à hipótese de existirem filhos comuns
do casal e exclusivos do autor da herança. (BRASIL, 2011, p. 4).
Na tentativa de solucionar o problema, o relator transcreve
a aprovação do enunciado da IV Jornada de Direito Civil:
Enunciado: Na hipótese de o companheiro sobrevivente concorrer
com filhos comuns (inc. I) e descendentes somente do de cujus (inc. II),
deve-se aplicar o disposto no inc. I, dividindo-se igualmente a herança.
Justificativa: Diante do princípio da igualdade entre os filhos,
não se pode conceber sejam estabelecidos quinhões diferentes numa mesma
partilha em que concorrem tanto os filhos comuns do companheiro sobrevivente
como os descendentes só do autor da herança. Entendimento contrário faria os
filhos exclusivos do autor da herança tivessem quinhão maior dos que os filhos
também do companheiro sobrevivente. (BRASIL, 2011, p. 5, grifo do autor).
Primeiro o leitor deve reparar num ponto estranho. No inciso
I o legislador fala em filhos, já no inciso II fala em descendentes (aqui
exclusivos do falecido). Vale salientar que em se tratando de descendentes, os
mais próximos excluem os mais remotos, salvo direito de representação (artigo
1.833 CC). Logo, só haveria concorrência, em tese, entre os filhos do falecido,
sejam exclusivos ou comuns. Todavia, há de se notar que utilizar apenas a
palavra filhos no inciso I gera divergência doutrinárias, das quais tem
defensores que acham que se forem netos concorrerão pelo inciso III. Algo que
também deve ser refutado com a inconstitucionalidade por tratamento
diferenciado. Há de se entender que a utilização da palavra “filhos” foi uma
falha técnica legislativa (GOMES, 2006, p. 67-68).
Não pode ser admitida a diferenciação dos filhos diante do
texto constitucional, razão pela qual a jurisprudência vem dando razão ao
Enunciado da IV Jornada de Direito Civil.
Agora se fala do que realmente a decisão em si pode gerar
efeitos, relacionado aos incisos III e IV do artigo 1.790 do Código Civil. No
casamento, quando não há descendentes, o cônjuge concorre com ascendentes. Já
na união estável, não havendo descendentes o legislador impôs a regra de
concorrer com qualquer outro parente suscetível. Pela regra da ordem de vocação
hereditária, se vislumbra a mesma falha técnica do legislador, quem concorre
primeiro são os ascendentes, para depois os colaterais. Não há como pretender a
concorrência de companheiro com ascendentes e parentes colaterais ao mesmo
tempo.
Todavia, aqui há o retrocesso com as leis anteriores. Na égide
da lei anterior, que regia acerca da sucessão dos companheiros, na falta de
ascendentes e descendentes, o companheiro herdaria a totalidade do patrimônio. Agora,
segundo o dispositivo do Código Civil, deve concorrer com os herdeiros
colaterais, sem nenhum tipo de diferença, o que vale dizer que concorrerão com
primos, tios, e outros (sempre obedecendo a ordem de vocação hereditária). É de
se imaginar que o companheiro herdará apenas um terço do que ajudou a construir
em vivência com o de cujus, valendo-se apenas da regra que parente suscetíveis
são os até o quarto grau.
Neste trecho o Ministro relator aduz a 3 pensamentos:
1 – Não há distinção entre o casamento e a união estável,
ambas possuem os mesmos direitos;
2 – Mesmo que pudesse haver a distinção entre os institutos,
ofenderia a dignidade da pessoa humana chamar parentes distantes a concorrer
com quem ajudou a construir o patrimônio, violaria o direito à herança e os
princípios da razoabilidade e da proporcionalidade;
3 – A aplicação do princípio da vedação do retrocesso em matéria
de direitos fundamentais (efeito cliquet),
não podendo o Código Civil retroagir perante a Lei 8.971/94.
Neste ínterim, o
Ministro relator vota pela inconstitucionalidade do inciso III do dispositivo
legal, e, por conseguinte, o inciso IV (na falta de outros parentes suscetíveis).
Ainda faltou vislumbrar acerca de outra divergência doutrinária.
Em não havendo outros parentes suscetíveis, o companheiro herdaria a totalidade
do patrimônio. Mas, de qual patrimônio? Do patrimônio relacionado apenas ao que
adquiriram na constância da união a título oneroso? Ou da totalidade do patrimônio,
seja a título oneroso ou gratuito, seja adquiridos na constância ou não da união?
Para Cahali (2007, p. 182-183) a herança está atrelada ao que dispõe o caput, limitando apenas aos bens adquiridos de forma onerosa durante a união. Logo, os bens particulares do de cujus serão conferidos ao Município, ao Distrito Federal ou a União, dependendo da localidade dos bens. Sendo assim, nas palavras do autor, há a concorrência do companheiro com o Poder Público. Este também é o entendimento de Zeno Veloso ([entre 2003 e 2008] apud DINIZ, 2010, p. 149-150).
Contrariamente, Gomes (2006, p. 68) afirma que se deve dar ao companheiro a totalidade do patrimônio deixado pelo falecido, seja a título oneroso ou não, adquirido ou não na constância da união estável, pois esta é a prerrogativa imposta no art. 1.844 do Código Civil, que dispõe acerca da herança jacente somente quando não existir cônjuge, companheiro ou qualquer parente sucessível. Dantas Júnior (2004, p. 604), em sua deixa, prefere acreditar que houve falta de técnica do legislador ordinário. No mais ele coaduna com Gomes ao tratar do art. 1.844 do Código Civil. No mesmo sentido aduz Diniz (2010. p. 149-150), que ainda preleciona a não possibilidade de concorrência do companheiro sobrevivente com as entidades públicas pelo fato deles serem apenas herdeiros sui generis.
Pelo que se dá a entender do voto do Ministro Relator da
Corte Especial, o tratamento deve ser o mesmo dado aos cônjuges. Não havendo
descendentes, nem ascendentes, cabe ao companheiro o patrimônio total. Não
tendo este patrimônio ligação apenas com o auferido a título oneroso na constância
da união.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo a contragosto dos professores, hoje está nítida que ao
menos é passível de discussão a inconstitucionalidade do tratamento
diferenciado da união estável e do casamento em relação aos direitos sucessórios.
Isto se dá pela falta de hierarquia das entidades familiares, preceituando os
princípios da afetividade, liberdade de escolha em qual entidade familiar
queiram conviver, igualdade das entidades familiares, entre outros princípios.
Não se pode haver diferenciação entre as entidades
familiares a ponto de dar extremas vantagens em uma forma de convivência em
detrimento de outras, como no caso de companheiros que só tenham patrimônio em
comum, que levam vantagem aos casados na mesma situação, ou de cônjuges que não
concorrem com colaterais e na união deveriam. Ao contrário, os direitos sucessórios
dos companheiros devem ser o mesmo dado aos casados.
Em se tratando do direito de familiar ser incluso nos
Direitos Humanos, não se pode haver retrocesso dos direitos adquiridos pela
sociedade. Com isso, o Código Civil não poderia retroagir face a legislação
anterior, Lei 8.971/94, aplicando-se, mesmo que de forma, ainda, incidental, a
inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil em sua integralidade,
seja pela diferenciação dos filhos, seja pelo tratamento diferenciado dos institutos
familiares.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de
janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: ´09
set. 2011.
______. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1.135.354 / PB. Requerente: Maria Jaydeth Miranda. Requerido:
Onaldo Lins de Luna – Espólio. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Distrito
Federal, 19 ago. 2011. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=102903>.
Acesso em: 09 set. 2011.
______. ______. Voto
do Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Distrito Federal, 19 ago. 2011.
Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=15725302&sReg=200901600515&sData=20110602&sTipo=68&formato=PDF>.
Acesso em: 10 set. 2011.
CAHALI, Francisco José. Sucessão decorrente do casamento e
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Novaes (Org.). Direito das sucessões.
3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 161-205.
DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Sucessão no casamento e na
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Lúmen Júris, 2004. p. 535-613.
DINIZ, Maria Helena.Curso de Direito Civil brasileiro: Direito
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GOMES, Orlando. Sucessões. 4. ed. atual. e aum. Rio de
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HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das
sucessões: concorrência do companheiro e do cônjuge, na sucessão dos
descendentes. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Família e responsabilidade: teoria e prática do Direito de Família.
Porto Alegre: IBDFAM; Magister, 2010. p. 55-64.
_______________________________________________________________________________
PS¹.: Peço aqui desculpas por utilizar-me da primeira pessoa. Sei que em textos acadêmicos, mesmo que não oficiais, a utilização da primeira pessoa (seja no singular ou no plural) não deve ser utilizada, mas dessa vez é questão de cunho pessoal mesmo. Não tive como conter-me sobre o assunto que defendi na banca da faculdade diante de pessoas que pensavam o contrário.
PS².: Espero comentários e um debate jurídico propriamente dito.
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