quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Atentado violento ao pudor e "abolitio criminis"


Ontem no Jornal Hoje, transmitido pela Rede Globo de Televisão, uma jovem de 18 anos relatou os abusos sexuais que sofria do próprio pai enquanto tinha 8 a 16 anos de idade. A jovem é estudante de direito e só tomou a atitude após saber que o mesmo também abusara sexualmente outras pessoas, como uma sobrinha e uma cunhada do suposto agressor, que é advogado e já pertenceu a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil.

Como acontece com vários casos silimares, a filha teria avisado a genitora, que nada fez.

A Delegada que investiga o caso pediu a prisão temporária e uma medida protetiva para afastar o suspeito da filha. A prisão temporária foi negada. A medida protetiva foi determinada, impondo ao suspeito a distância mínima de 100 metros da filha. Também foi determinada a busca e apreensão de computadores e outros objetos do suspeito.

Não estou aqui para fazer o julgamento, nem me predispor a falar do caso em si, pois não sou policial, muito menos juiz para falar sobre isso. Nem posso ser leviano a ponto de condenar uma pessoal por suposto fato como de fato faz a mídia deste país, que condena uma pessoa sem nem haver processo para julgá-lo. Todos são inocentes até que se prove o contrário. Então, que a polícia faça um bom serviço investigativo e que o Ministério Público e o Magistrado encarregados possam fazer seus trabalhos dignamente. Caso entendam que ele é culpado, e que consigam comprovar, que ele seja punido. No caso de não conseguirem provar, que ele seja absolvido. Simples assim.

O fato que me fez escrever o texto é sobre as informações dadas em várias emissoras de televisão, sites, rádios, etc. Nas matérias fora dito que o acusado não poderia ser enquadrado por estupro, pois não houve conjunção carnal, mas outros atos libidinosos diversos da conjunção carnal.

Tal fato causou estranheza aos operadores do Direito, pois o crime de atentado violento ao pudor não existe mais no ordenamento jurídico. Este fora revogado pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Daí veio a série de confusões cognitivas devido às informações editadas e mal passadas pela pessoa de direito e pelas encarregadas de passar a informação.

Como dito acima, a jovem hoje se encontra com 18 anos e alega que fora abusada sexualmente entre os 8 e 16 anos. Logo, os fatos deixaram de acontecer com a mesma a cerca de 2 anos. O problema é, a Lei 12.015/2009 tem pouco mais de 2 anos. Com isso, houve atos após a mudança ou não?

Se foram praticados todos os atos da continuidade delitiva anteriormente a modificação legal, de fato o crime seria o de atentado violento ao pudor. Mas este deixou de existir. Como fica então se houve a “abolitio criminis”? Este foi o pensamento da maioria dos operadores do Direito que ainda não tem o conhecimento de algumas decisões das cortes especiais do país.

Se houve continuidade delitiva após a mudança da lei, já poderia se falar logo em estupro. (Entendo eu, que mesmo que todos os acontecimentos tivessem acontecidos na vigência da redação anterior da lei, a força policial que investiga o caso já poderia falar que os atos caracterizam estupro, de acordo com a lei vigente hodiernamente).

Primeiro vamos falar dos crimes em si. Antes da entrada em vigor da Lei 12.015/2009 o estupro era previsto da seguinte forma: “Constranger mulher à conjunção carnal. Mediante violência ou grave ameaça”. Já o atentado violento ao pudor era da seguinte forma: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Para ambos os crimes a pena era a mesma, “reclusão, de 6 a 10 anos”.

Como se pode perceber, somente mulher poderia ser vítima de estupro. Já atentado violento ao pudor, qualquer pessoa poderia sofrer. Enquanto no estupro a elementar era conjunção carnal (membro sexual masculino penetrando em membro sexual feminino), no atentado violento ao pudor a elementar era a prática de outros atos libidinosos diversos da conjunção carnal (utilização de outros locais que não foram feitos exatamente para relação sexual, mas que humanos utilizam como se fosse).

Dizem que a mudança da lei ocorreu para acabar com as mistificações e confusão da sociedade, que achava que todo abuso sexual era estupro. Ou até para dizer que homem pode sofrer estupro. No caso, homem poderia sofrer abuso sexual, mas não estupro, já que este crime tinha como elementar a vítima do sexo feminino (quem quiser que me prove que algum homem sendo gravemente ameaçado, tendo seu psicológico abalado, consiga ter conjunção carnal. Vale dizer, consiga fazer seu órgão sexual ficar ereto). Mas hoje homem pode sofrer estupro (entendo que não há como ser na conjunção carnal, mas somente com outros atos libidinosos. Todavia, isso não vem ao caso)

Voltando ao tema. Com a entrada em vigor, o crime de atentado violento ao pudor não existe mais. Porém, o crime de estupro teve sua redação modificada, acoplando o antigo estupro com o antigo atentado violento ao pudor. Hodiernamente vigora com esta redação: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A pena continuou de 6 a 10 anos com regime de reclusão.

O legislador só facilitou. Agora tanto homem quanto mulher pode sofrer estupro. Para caracterização do crime pouco importa que seja conjunção carnal ou outros atos libidinosos.

A doutrina diverge num ponto, se o indivíduo comete o crime com conjunção carnal e outros atos libidinosos se serão “dois crimes”. Uns acham que só pode ser punido por um crime. Outros falam que como são atos distintos, há continuidade delitiva. Não sou ninguém para falar quem está certo, ou quem está errado. Sou um reles bacharel em Direito recém-formado. Mas minha humilde opinião é a de que só poderá ser punido por um único fato, ainda que seja praticado com conjunção carnal e outros atos libidinosos, haja vista que ambos são elementares de um único crime. Com a vigência da lei anterior poderia e deveria ser entendido como continuidade delitiva.

Mas o que importa mesmo é saber se houve abolitio criminis, se não há como punir o cidadão no caso de comprovação do crime e se ele será beneficiado de alguma forma (benefício pela modificação da lei, não benefícios de sua profissão e das mazelas das investigações e corrupção do país que pode ocorrer).

Posso lhes afirmar que não houve abolitio criminis. O crime de atentado violento ao pudor não existe mais. Todavia, as elementares típicas do crime estão previstas em outro crime. Houve mera alteração normativa. Não há mais que se falar em atentado violento ao pudor, mas sim, em estupro.

Poderia se pensar assim: o crime, a época em que fora cometido tinha a denominação de atentado violento ao pudor, hoje inexistente. O fato foi punido e supervenientemente fora modificada a legislação. Não será mais punido? Será sim. Mas apenas mudando a nomenclatura do delito, que agora é estupro. Na mesma lógica segue em casos ocorridos anteriormente e somente investigados após a vigência da nova redação legal.

Neste caso, há a aplicada do Princípio da Continuidade Normativo-Típica, aplicado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em alguns casos concretos, como no caso em que pediram habeas corpus por entenderem que o crime de rapto inexiste e assim seria aplicado a abolitio criminis. A Corte entendeu que as elementares do crime passou a caracterizar outro crime, o de sequestro ou cárcere privado qualificado (art. 148, § 1º, V do Código Penal).

Vejamos a decisão que consta no informativo por completo:

A 2ª Turma indeferiu habeas corpus impetrado em favor de condenado pela prática do crime de rapto (CP, art. 219). A defesa sustentava a ocorrência de abolitio criminis, em razão da superveniência da Lei 11.106/2005, que revogou os artigos 219 a 222 do CP, e pleiteava a conseqüente extinção da pretensão executória. Aduziu-se que, muito embora o referido dispositivo tenha sido revogado com o advento da supracitada lei, a restrição da liberdade com finalidade libidinosa teria passado a figurar — a partir da entrada em vigor desta mesma norma — entre as possibilidades de qualificação dos crimes de seqüestro ou cárcere privado (CP, art. 148, § 1º, V). Reputou-se que a mera alteração da norma, portanto, não haveria de ser entendida como abolitio criminis, por ter havido continuidade normativa acerca do tipo penal. HC101035/RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, 26.10.2010. (HC-101035) (informativo 606 - 2ª Turma)

Como se pode ver, o caso é similar. Embora o crime de atentado violento ao pudor tenha sido revogado pela Lei 12.015/2009, o crime agora tem outra denominação, o de estupro. Esta denominação nova ocorreu na própria lei, sendo idêntico ao caso julgado pela Corte Máxima do país no exemplo supracitado.

E não haverá benefícios para o suspeito, em caso de condenação, pois o crime continua existindo e a pena e o regime continuam os mesmos. Aliás, já eram as mesmas penas na vigência anterior a Lei 12.015/2009. Caso a pena do crime vigente fosse menor que o da redação anterior do crime revogado, deveria ser aplicada a pena menor, em respeito aos princípios norteadores do Direito na aplicação na norma mais benéfica. No caso da pena maior com a redação nova, aplicar-se-ia a menos gravosa também.


CONCLUSÃO


Quando há revogação de um tipo penal, mas as suas elementares que tipificavam o crime passam ou continuam a fazer parte de outra tipificadora criminal, não há abolitio criminis, mas aplica-se o princípio da Continuidade Normativo-Típico aplicado em casos concretos pelo STF.
Embora se fale em atentado violento ao pudor no caso em concreto, devido os fatos terem ocorridos na vigência anterior a Lei 12.015/2009, hoje se aplicaria normalmente como crime de estupro, não devendo persistir o equívoco de que uma mera nomenclatura de um delito revogado possa gerar impunidade dos fatos ocorridos e que ainda continuam sendo crime. Não é como no caso de adultério, que deixou se ser crime e que os elementos que caracterizavam não permitem a acusação por outro crime vigente no país.


REFERÊNCIAS


BRASIL. Descreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940. Código de Processo Penal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 31 dez.. 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>. Acesso em: 29 set. 2011.


______. Supremo Tribunal Federal. HC101035/RJ. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Distrito Federal, 25 a 29 out. 2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo606.htm >. Acesso em: 29 set. 2011

NOTAPAJOS.COM. Filha denuncia pai, advogado, por abuso sexual. [Rio de Janeiro]: G1/Globo/Notapajos, 2011. Disponível em <http://notapajos.globo.com/lernoticias.asp?id=44335&noticia=Filha%20denuncia%20pai,%20advogado,%20por%20abuso%20sexual>. Acesso em: 29 set. 2011.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A Lei Maria da Penha não foi feita para proteger homens


Uma colega alertou-me sobre uma decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul que aplicou analogicamente uma medida protetiva em favor de um homem, para que sua esposa mantenha-se afastada dele por certa distância. Normalmente, esta decisão poderia ser muito bem elaborada, embora fundamentada por analogia e aplicando a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Conhecida como Lei Maria da Penha. (BRASIL, 2006).
Vamos ao caso em tela. O autor da ação pediu, em sede de liminar, o afastamento da esposa, na qual está se separando judicialmente, a uma distância mínima de 100 (cem) metros, devido ao sofrimento de agressões físicas e verbais praticadas pela ré. Atitude que o expõe a vexame e humilhação. Além das agressões houve ameaças de morte. Tais agressões ocorreram em vários locais, como trabalho do autor, casa própria e na frente do filho, adolescente.

A liminar não foi concedida em primeiro grau sob o fundamento que não haver previsão legal para aplicação da medida protetiva em favor do homem. Isso por permear o direito de liberdade, constitucionalmente protegido, salvo casos previstos em lei. O autor recorreu da decisão com agravo de instrumento com liminar. Nesta feita, o TBMS (ad quem) proferiu decisão favorável ao autor, através do Desembargador Dorival Renato Pavan, membro da 4ª Turma do respectivo Tribunal. (MATO GROSSO DO SUL, 2011).

Na fundamentação o Desembargador disse alguns trechos que transcrevo da notícia:

O relator afirmou que o princípio a ser aplicado para definir a espécie é o da razoabilidade, havido por ele como sendo o adequado, eis que “a inexistência de regra específica que preveja medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direito dos homens (gênero masculino) não é justificativa plausível ao indeferimento de tal pleito, pois, reafirmo, o ordenamento jurídico deve ser interpretado como um todo indissociável e os conflitos de interesses resolvidos através da aplicação de princípios e da interpretação analógica de suas normas”.
Além disso, ponderou que “o agravante relata situação de conflito familiar insustentável que afeta os direitos fundamentais seus e de seu filho adolescente, todos (sic) afetos à dignidade da pessoa humana”, o que o levou a entender que o livre direito de locomoção da esposa deve ser relativizado para inviabilizar que possa ela continuar a praticar atos que se revelam atentatórios a valores relevantes como são os da honra e da dignidade da pessoa humana, passíveis também de proteção, mesmo que pela via eleita e postulada pelo agravante.
[…]
Pavan sustentou na decisão ainda que “a restrição à liberdade de locomoção da agravada não é genérica, mas específica, no sentido de tão-somente manter distância razoável do agravante, para evitar ao menos dois fatos, de extrema gravidade, a saber: a) primeiro, de que a  agravada possa dar continuidade à prática dos atos agressivos e de humilhação que submete o agravante perante sua própria família e colegas de trabalho, ofendendo, com tal ato, sua dignidade;  b) segundo, de que é possível que o autor, sentindo-se menosprezado, humilhado e ofendido, possa revidar à agressão, com prejuízos incalculáveis para o casal e consequências diretas no âmbito da família.”
O desembargador fundou-se no argumento de que “o agravante, ao invés de usar da truculência ou da violência, em revide aos ataques da mulher, vem em juízo e postula tutela jurisdicional condizente com a realidade dos fatos e da situação de ameaça que vem sendo – ao que tudo indica – praticada pela mulher”, razões pelas quais entendeu que “deve ter atendido o seu pedido, sendo mesmo possível que se utilize da medida requerida na inicial, como liminar, sem que isso possa implicar em qualquer cerceamento na liberdade do direito de ir e vir da agravada, que encontrará limite, tão-somente, na ordem judicial restritiva de não aproximação do autor, exatamente para evitar danos maiores tanto a ela mesma quanto ao próprio agravante”.
O Des. Pavan aplicou as disposições da Lei Maria da Penha por analogia e por via inversa, salientando que “sem desconsiderar o fato de que a referida Lei é destinada à proteção da mulher diante dos altos índices de violência doméstica em que na grande maioria dos casos é ela a vítima” realiza-se o princípio da isonomia quando as agressões partem da esposa contra o marido, de forma a proporcionar o deferimento da liminar.

Agora que se vai a análise do caso e as referidas críticas, com a devida vênia.

Primeiro, no início do texto fala em separação judicial. Em termos técnicos, a doutrina e a jurisprudência majoritária já entendem que este instituto cível foi aniquilado com a Emenda Constitucional 66, de 13 de julho de 2010 (EC66), que alterou o artigo 226, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil, passando a vigorar com a seguinte redação: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. Com isto, não cabe mais falar na separação, haja vista que nem prova de culpa de faz mais necessária para a decretação do divórcio. Nem sequer será necessário um lapso para o acontecimento, como previa a Lex anterior (2 anos separados de fato ou 1 ano separado judicialmente). Seria melhor falar em divórcio direto, mesmo que o processo de divórcio tenha começado anteriormente à EC66. Aplicar-se-ia a fungibilidade das ações decorrente de regramento jurídico posterior. (BRASIL, 1988).

Posteriormente se fala se fala em ex-marido. Como ainda não fora dissolvido o casamento, tecnicamente ainda são marido e mulher.

Mas ao caso que tem a ver com o verdadeiro tema é: Pode ser aplicada alguma medida protetiva da Lei Maria da Penha para proteger homem? A resposta há de ser negativa.

Primeiro que a Constituição em seu artigo 226, § 8º prever e assegura à família mecanismos que proíbam a violência no âmbito das relações familiares. Isto de fato é absoluto, mas se permeia através das leis inferiores. Em decorrência da imposição constitucional foram criadas algumas leis específicas para proteger pessoas em estados de vulnerabilidade e que precisam de proteção especial e prioritária.

Em razão do dito acima, foram criadas e promulgadas algumas leis, como: Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso); Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha); entre outras leis, decretos, convenções e tratados internacionais vigentes no país, como a proteção aos deficientes físicos. Todas estas leis são específicas para cada tipo de pessoa. (Lembrando que há ainda a previsão da criação do Estatuto do Jovem, por força da Emenda Constitucional 67 de 2010).

Na Lei Maria da Penha, logo no início, se ver que fora criada para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Mulher, gênero feminino. Logo, esta lei não se aplica para homens, nem mesmo para homossexuais masculinos, travestis ou transexuais que não mudaram sua documentação civil com decisão judicial que imponha a troca de gênero.

Não pode o intérprete querer, ao mero alvedrio, aduzir a proteção de um grupo vulnerável a outro. A Lei Maria da Penha foi criada para proteger as mulheres vítimas de agressões físicas, cada vez mais comuns no Brasil. Em caso de agressões a outros, será aplicados, seja separadamente ou concomitantemente, as proteções cabíveis para cada grupo de vulnerabilidade. Exemplo: Em sendo uma menina, adolescente, aplicasse conjuntamente a Lei Maria da Penha e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Em sendo um homem idoso, aplicasse exclusivamente o Estatuto do Idoso.

No caso específico, trata-se de um homem. Logo, gênero masculino, onde não se aplica uma lei específica para a proteção de mulher. Daí viria uma pergunta: Então foi errada a decisão do Desembargador? O homem teria que continuar sofrendo agressões físicas e verbais da mulher por não haver previsão legal?

Vamos por parte. Primeiro o magistrado de primeiro grau negou o pedido de liminar com fundamento de não haver previsão legal para garantir o pedido realizado pelo autor. Para poder comentar tal decisão, seria mister saber quando foi prolatada a decisão. O site do TBMS tem notícia apenas da decisão do tribunal ad quem datada (a notícia) de 17 de setembro de 2011. Mas não tem como saber a data da decisão a quo.

A data seria de suma importância para avaliarmos os quão atualizados estão os operadores do Direito. Para não ser leviano (embora por se tratar de pedido de liminar e agravo de instrumento para atacar a decisão que denegue a liminar possa dar prazo razoável para a crítica a seguir), pensamos que possa ser anterior à vigência da lei que se fala abaixo.

A Lei 12.403, de 4 de maio de 2011 alterou dispositivos do Código de Processo Penal, especialmente os relacionados à prisão e medidas cautelares e liberdade provisória. A lei entrou em vigor no dia 4 de julho de 2011, devido à vacacio legis de 60 dias.

Daí a pergunta, a decisão do juízo a quo é anterior a referida lei? Pela razoabilidade do tempo, parece que não. Então, dizer que não há previsão legal para aplicar alguma medida cautelar (protetiva) é está desatualizado com as leis vigentes no país.

Veja-se o que dispõe o Código de Processo Penal com a redação dada pela Lei 12.403:

Art. 319.  São medidas cautelares diversas da prisão:
[…]
II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;

Como se pode ver, hodiernamente há previsão legal para o caso tem tela. Poderia sim o magistrado aplicar cautelarmente a proibição da esposa de chegar próximo ao marido e ao filho adolescente (aqui sim se aplicaria uma regra específica, quanto ao filho adolescente). Com isso, aplicando a razoabilidade de manter a esposa a 100 metros de distância, asseguraria a proteção do bem da integridade física e psicológica do requerente. Em caso de descumprimento, pagamento de multa.

Agora em se tratando da decisão do Desembargador é que não se pode ter dúvida da falta técnica, com a devida vênia que cabe a um mero bacharel em Direito. Muito bonita a decisão em falar do princípio da isonomia, aplicação analógica de lei específica, proteção da integridade física, princípio da razoabilidade, a moralidade do autor ajuizar uma ação requerendo proteção jurisdicional e não partir para a violência, como ocorre muito, entre outras fundamentações ditas pelo douto magistrado.

Embora a decisão do magistrado esteja em consonância com a legislação penal e processual penal, a fundamentação parece ter sido errônea. Não se aplica analogia ao alvedrio do entendimento do magistrado. A analogia deve ser aplicada com cautela. O direito à integridade física e outros direitos devem ser protegidos, mas não há como se aplicar lei específica de proteção e um grupo vulnerável para outro grupo. É inadmissível aplicação do Estatuto do Idoso para quem não é idoso ou não guarde consonância com elementos que ligue a devida proteção.

Aplicar a Lei Maria da Penha para proteger um homem não é de bom senso. A Lei Maria da Penha protege a mulher e exclusivamente a ela.

Não quero aqui dizer que o autor da ação não teria direito à proteção legal. Hoje existe a forma, basta ficar atento às mudanças legislativas. Quando se fala da fundamentação ter sido errônea é que não haveria a necessidade de aplicar analogicamente a Lei Maria da Penha para proteger um ser do sexo masculino. O CPP já prever medidas cautelares do mesmo teor legislativo e neste diploma legal não há restrição quanto a gênero, idade, coordenação motora, etc.

O princípio da igualdade é verificado pelo tratamento desigual na medida da desigualdade. Sem falar que é tratamento igual perante a lei. Uma lei que protege um grupo considerado vulnerável não infringe o princípio constitucional. Ao contrário, ratifica, haja vista que os vulneráveis sofrem mais e precisam de maior proteção.


CONCLUSÃO:


A decisão, embora protegendo e garantindo um direito inerente ao ser humano (integridade física e moral), teve sua fundamentação equivocada. Não se aplica a Lei Maria da Penha para proteção de homens, haja vista que a lei específica protege tão exclusivamente seres do sexo feminino.
As medidas cautelares vigentes no Código de Processo Penal aplicar-se-ia tranquilamente ao caso em tela, não havendo necessidade de aplicação analógica.


REFERÊNCIAS:


BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 5 out 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 28 set. 2011.


______. Descreto-Lei nº 3689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 13 ago. 1941. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em: 28 set. 2011.


______. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 08 ago. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 28 set. 2011.


MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul: Portal Poder Judiciário. Liminar proíbe mulher de se aproximar do ex-marido. Campo Grande, 19 set. 2011. Disponível em: <http://tjms.jus.br/noticias/materia.php?cod=20132>. Acesso em: 28 set. 2011.


__________________________________________________________________________________

Hoje, mais do que nunca, vejo a necessidade dos operadores de Direito se atualizarem com as legislações.
Depois dessa, tem o caso da garota que era estuprada pelo próprio pai e a senhora Delegada disse que não era estupro por não ter ocorrido “conjunção carnal”, mas outros atos libidinosos. Que seria atentado violento ao pudor. Pode ser que o crime tenha ocorrido anteriormente a mudança da lei, mas não há modificação quanto à pena. Muito menos há de se falar mais em atentado violento ao pudor. E pelo caso, parece que, mesmo a primeira vez tendo acontecido antes da modificação legal, que houve atos idênticos posteriormente.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Exame de Ordem vira tema de novela

Dia 26 de setembro começa uma nova novela da Rede Globo. Entre os temas abordados está o Exame de Ordem e a necessidade de aprovação para exercer a profissão de advogado.

O tema pode ser importante, mas corre sérios riscos, a depender do desenrolar da trama. O personagem será Marcos, vivido por Angelo Antônio. Ele teria feito um acordo com a esposa de que cuidaria da família (casa e filhos) enquanto a mulher trabalharia para sustentar. Acontece que, como na vida real, o status financeiro da família não permanece o mesmo com o decorrer dos anos. Pela necessidade de maior poder aquisitivo para a manutenção da família e os aumentos dos gastos, a esposa passa a pedir ao marido que o ajude nas despesas da casa. Todavia, ele precisa passar no Exame de Ordem da OAB para ter uma profissão.

Como já transmitido nos folhetins, a personagem da esposa critica o marido por ser preguiçoso e não se esforçar para ser aprovado no Exame. Este é o problema, a possibilidade de estigmatização dos reprovados no Exame de Ordem. Corre o risco de todos os reprovados passarem a ser taxados de “preguiçosos” e “descomprometidos com os estudos”, o que não é verdade.

O jeito é esperar para ver o que a forma como a trama das seis abordará. Sabemos ainda que, com os episódios e a audiência, os rumos dos personagens sempre mudam. Pode ser que o tema do Exame de Ordem seja somente inicial, ou que seja tratado na trama toda. Pode ser que coloquem outros personagens passando pelo mesmo problema da reprovação no Exame, mas sem serem preguiçosos. Isso dependerá da boa vontade dos autores, da rede televisiva, e também da audiência. Vamos ter que esperar mesmo.

Mas falando sobre o Exame. De fato, há muitos descomprometidos com os estudos que são reprovados no Exame de Ordem, além de faculdades que não ensinam corretamente, nem preparam seus acadêmicos para o mundo do trabalho. Mas custa dizer que isso é da extrema maioria. Há muitas conotações acerca do Exame de Ordem que muitos não querem falar.

O mercado de trabalho está saturado. Disso a maioria já sabe. Mas o fato de dizer que as faculdades não preparam os acadêmicos para o trabalho é contestável. A Ordem dos Advogados do Brasil exerce um poder ímpar na sociedade. É a única ordem (ou classe trabalhista) referenciada na Constituição Federal. Tal acontecimento se faz devido à extrema necessidade da imperiosidade da justiça. Esta Ordem tem o dever, inclusive, de corroborar com o Ministério da Educação e Cultura (MEC) na aprovação das faculdades. Isso se faz por meio de pareceres. A OAB se queixa de muitas faculdades terem suas autorizações e reconhecimentos sem o aval da OAB, que dá parecer contrário. Todavia, há de se questionar os reais motivos dos pareceres desfavoráveis. Se os mesmos são meramente com cunho políticos ou sociais. Caso sejam pela falta de qualidade estrutural ou física, estas faculdades sequer deveriam ser autorizadas, muito menos reconhecidas. Caso tenham cunho político ou de perseguição, pode ser averiguado.

O que há de se questionar é o que a OAB faz para cassar estas faculdades. Não vejo sendo feito nada. Desconheço qualquer tipo de Ação Judicial para fechar essas mantenedoras da péssima qualidade de ensino. Então, a OAB tem o Exame de Ordem, que com a reprovação, cada vez maior, serve de escopo para a manutenção do próprio Exame. (Obs.: se alguém conhece alguma ação judicial da OAB para fechar alguma faculdade em que deu o parecer desfavorável para autorização e reconhecimento que, por favor, avise. Estarei de prontidão para me redimir pela falta de conhecimento específico).

Outro ponto intrigante é que a maioria dos professores dessas faculdades são advogados. Muitos são juristas de outras profissões (tecnicamente seriam cargos, vistos que são todos públicos, já que a única profissão privada exercida por um bacharel em Direito é a advocacia). Estes professores (advogados e demais juristas) estariam desqualificados para lecionarem os acadêmicos de Direito a terem uma dignidade mínima para o exercício da profissão? Por que estes professores aprovariam seus alunos se entendem que eles não estão preparados? Em que lugar ficou a Ética profissional da busca da justiça? Mas eles são advogados, pertencem ao quadro da Ordem (mesmo os de alguns cargos, como Defensores Públicos, Advogados da União, etc.). Estão aí alguns dos motivos pelo qual podem ser mantidas as faculdades mequetrefes. Ninguém quer tirar alguma vantagem daqueles que são seus.

E quem não apostaria na péssima qualidade do ensino mercadológico? Digo, alguém já reparou que muitos dos mantenedores das faculdades de Direito tem seus próprios cursinhos preparatórios ou coligações com os mesmos? Será que o mau ensino não é proposital para a manutenção da máquina de cursinhos existentes no país e crescem na mesma tomada do crescimento absurdo de faculdades de Direito? (São só questionamentos, não estou aqui afirmando que isso ocorra, mas que há essa possibilidade). Lembro-me da surpresa que tive de uma pessoa muito conhecida no mundo jurídico afirmar que deixou a carreira para manter os cursinhos preparatórios, pois são muito mais lucrativos. Essa é a realidade, o transmitir conhecimento está atrás do real interesse, lucros.

Neste ínterim, há uma questão da qual repudio. Pessoas das classes D e E continuarão sendo raríssimas exceções na profissão de advogados. Estes lutam a vida toda. Tem a obrigação de estudar em escolas fundamentais e de ensino médio com uma péssima qualidade de ensino (especialmente do ensino público), que não tem culpa disso, pois é a realidade do Brasil Após isso estudam do jeito que podem para entrar numa faculdade, e normalmente pensam também na faculdade de Direito, que sempre foi e sempre será cobiçada (trata-se de cunho histórico. Qual família não gostaria de ter um médico ou advogado entre os seus membros? Isso vem desde a colônia brasileira, para não dizer de tempos muito antes). Após luta para entrar na faculdade, encontra mais uma barreira, o nível das aulas já começa maior do que a sua capacidade cognitiva. Mesmo assim vai aprendendo aos poucos e se familiariza com os estudos. Eles não tem culpa do ensino público do país ser abaixo do necessário. Passa no mínimo 5 anos na faculdade e quando termina encontra mais um óbice, o Exame de Ordem.

Daí qual a parte que vocês poderiam perguntar acerca do meu repúdio? Por ter que passar por um Exame de Ordem? É claro que não. Meu repúdio está na possibilidade do péssimo ensino ser proposital para que as mesmas pessoas façam um cursinho preparatório para o Exame, além do valor exorbitante que é cobrado para fazer a prova. Façam uma comparação da aprovação de candidatos que fizeram cursinhos e dos que não fizeram. O número é quase total daqueles que fizeram um tipo de cursinhos serem aprovados, enquanto os que não fizeram serem reprovados. Os cursinhos precisam ser custeados, razão pela qual os cidadãos das classes D e E continuam sendo exceções, pois não tem condições econômico-financeiras para isso. Passam a ter mais uma luta da tentativa do estudo sozinho, sem falar que dificilmente terão prática jurídica (mesmo em fase de estágio), por não terem conhecimentos pessoais. A prática é que faz o estudioso compreender melhor a matéria.

Daí muitos perguntariam: E os Núcleos de Prática Jurídica (NPJ)? – respondo: já repararam no nível desses NPJs? Cada vez pior. A maioria dos advogados não quer nem participar desses núcleos. Quase a totalidade afirma que só faz parte dos NPJs exclusivamente pelo dinheiro que recebe (mais uma vez o pensamento é só pelos lucros, e não no ideal de justiça pela qual juraram na formatura. Aliás, parece que o juramento dos formados em Direito e Medicina é só “da boca para fora”). São raros os núcleos de prática jurídicas que realmente lecionem, mesmo assim, todos são limitados à determinadas áreas jurídicas, normalmente só recebem ações civis (de baixa complexidade), penais (habeas corpus e relaxamento de prisão) e algumas causas trabalhistas. Nunca vi faculdade que tenha NPJ exercendo o Direito Administrativo, Tributário, Empresarial, entre outros.

O óbice do Exame de Ordem é pior para essas pessoas (classes baixas) justamente pelas dificuldades que a própria vida já os impõe. Com o passar do tempo, e a reprovação no exame o mesmo fica sem profissão e a cada dia que passa esquecendo o que tinha aprendido (até pelo fato de não terem como estudar, não terem livros, etc.). Perguntaram-me: não existem bibliotecas? Existem, mas quem custeará a condução para se chegar numa biblioteca? (poucos ainda podem fazer isso ou tem uma biblioteca próxima). E os livros cada vez mais defasados nas bibliotecas dessas faculdades? (passando por algumas bibliotecas que me informaram, verifiquei que a maioria sequer tinha uma edição de 2011 de um livro, imagine. Pior ainda é verificar o acervo de livros de Direito Civil de 1998, quando ainda regia-se pelo Código Civil de Beviláqua. Certo que se pode estudar por comparação e ainda há casos na justiça brasileira que são regidos pelo Códex Civilista antigo, mas tendo-se como se comparar com os atualizados).

Os ricos e abastados têm outra história por trás de tudo isso. Eles têm condições de comprar livros e ter acervos cada vez mais atualizados. A maioria não tem dificuldade para encontrar estágio (remunerado, ainda mais), pois tem sempre “alguém conhecido”, o que não os faz terem necessidade do NPJ da faculdade. Estes têm os olhos da maioria dos professores, que os bajulam.

Com a proliferação das faculdades quem tem mais a perder são os pobres mesmo, que pensam que poderão ser alguma coisa na vida ter uma profissão estigmatizada como uma das mais nobres do país (e também estigmatizada por outros adjetivos). Os pobres não têm culpa por terem uma educação péssima aplicada pelo poder público e de sonhar com a profissão de advogado. De achar que estão estudando em algo autorizado e reconhecido com a capacidade de transformá-lo em um profissional e acabar encontrando uma barreira seletiva não natural.

Não quero dizer que o Exame tenha que acabar, ao contrário, sempre achei e ainda acho que o Exame de Ordem é necessário, mas não como um poder de seleção (reserva de mercado), mas como verificador de suficiência. Para isso faz mister uma atuação mais ativa dos órgãos e das pessoas coligadas para que a educação seja melhor, desde o início, no ensino fundamental. Porém, o tempo já passou, e fazer todos os que já tiveram uma educação péssima voltar ao fundamental é depreciativo e fere de morte a dignidade da pessoa humana. Para isso a OAB, como senhora da verdade do mundo jurídico, deveria ao menos tentar cassar as autorizações e os reconhecimentos das faculdades que não são dignas de preparar o cidadão para a profissão, não tendo como fundamento a reprovação no exame, pois este não mede a capacidade laborativa.

O que se quer é um Exame justo, com valor acessível. Justo para todos. Por falar em acessível, poderiam perguntar sobre a isenção. Alguém de cidade “pequena” (até de cidade grande e tumultuada) já tentou se inscrever no tal “CadÚnico”? É uma verdadeira burocracia e m descaso com o cidadão. Como se não bastasse, muitos se inscrevem e tem suas isenções indeferidas e ninguém sabe o real motivo. Voltando ao valor, 200 reais é muito para uma prova, os gastos não chegam nem a metade disso.

O que quero dizer com tudo isso e o que tem a ver com a novela?
Bem, a novela terá um personagem rico que não é comprometido com os estudos (como já falei acima). De certo alguém que não é comprometido não merece nem deve exercer a profissão de advocacia, que é essencial para a sociedade. Porém, a reprovação no Exame não é somente para os descomprometidos, tampouco os aprovados no Exame são comprometidos e são bons profissionais.

Muitos que são reprovados no Exame têm a capacidade mínima, às vezes até máxima, para a profissionalização, mas por motivos “N” não conseguem ser aprovados num Exame de Ordem que não busca a suficiência (é só observar cada vez mais a utilização de regras e leis muito específicas, com intuito meramente de reprovar mesmo) de quem pretende ser profissional, mas uma forma de exclusão e seleção de alguns. Para confirmar isso, é só verificar o número de juristas que já foram reprovados em Exame de Ordem, mas já foram e exercem funções de Promotores, Magistrados, Defensores, etc.

Por outro lado, muitos que são aprovados no Exame viram advogados e param com os estudos, com o “comprometimento” que tiveram exclusivamente para a aprovação numa prova. Muitos passaram por aprenderem ao “macetes” dos cursinhos preparatórios e até receberem algumas questões das provas (não há quem me faça acreditar que alguns cursinhos acertaram em simulados as questões idênticas ou muito semelhantes das provas oficiais, inclusive perguntas com especificidades gritantes). Após a aprovação vão ser “apenas profissionais” e cometem erros gritantes. O que comprova também que passar no Exame não significa muito. É preciso primeiro parar de pensar que se deve estudar para passar, mas estudar para aprender e para praticar (especialmente a Ética). Melhor ainda, não estudar para passar, mas até passar e após passar, estudar sempre.

Que a novela não faça dos bacharéis em Direito em pessoas estigmatizadas pela preguiça do seu personagem e faça do tema algo mais condizente com toda a realidade. Que possa ser mostrado que realmente há faculdades com ensinos aquém do necessitado, mas que há muitas que exercem muito bem a sua função. Que há barreiras para que pobres exerçam a função “nobre da advocacia” e não apenas mais um riquinho que fora reprovado. Que mostre que o Exame não é suficiência, mas uma forma de barreira, mesmo que necessária por alguns fatos, mas que ele somente não bastaria, e sim uma atuação maior dos órgãos para a qualificação profissional e educacional, não só jurídica, mas de todas as áreas. Que mostre também a falta de compromisso dos próprios advogados no exercício extra funcional (o de professor). Aqui eu faço uma pergunta: Cabe à OAB punir o advogado que leciona no ensino jurídico sem a devida qualidade? (não sei responder isso, mas que acho antiético uma pessoa que sabe ser incapaz de ensinar fazer isso, acho). 

E mais uma pergunta: Alguém pode ser responsabilizado pelo prejuízo que os bacharéis em Direito tiveram por não alcançarem o sonho da profissão na qual um órgão (MEC) afirma teria ao terminar uma faculdade que supostamente teria condições de prepará-los para a profissão? Afinal de contas, mesmo se fosse pela péssima qualidade (e se fosse só isso), a culpa não seria deles, pois acreditaram naqueles que tem o poder de atestar a qualidade. (Punição a quem deva ser punido).

Sonho ainda com um dia em que os colegas juristas (muitos que sentem o prazer em dizer que serão futuros colegas por estes não ter uma profissão, ainda) procurem não pensar no Exame como uma ferramenta de contenção do número de advogados, mas de verificar se os bacharéis têm a qualidade mínima para exercer a profissão que só aprenderá realmente, com a prática. Pouco importa se 100 mil ou 1 milhão sejam profissionais, desde que todos tenham qualidade. E que reconheçam que o Exame precisa muito ser aperfeiçoado.

Sonho ainda com o dia em que o mundo jurídico realmente se aproxime dos desprovidos de riqueza. Que se chegue aos pobres o conhecimento jurídico para que os mesmos possam entender dos seus direitos.

PS.: Aos juristas que sentem o prazer em menosprezar os colegas juristas por “ainda não serem advogados” ou não terem uma profissão/cargo, uma lição da Majestosa Fernanda Montenegro. No Curso de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a famosa atriz negou-se a dar um autógrafo a um aluno da universidade. Este aluno ficou revoltado com a atitude da artiz e passou a chamá-la de mercenária e egoísta. Minutos depois, na palestra que a Grande Atriz Brasileira conduziu, ela explana com as seguintes palavras: “Hoje me bati com um colega que estuda nessa faculdade que queria um autógrafo meu quando me neguei a dar. Não é por nada, mas me recuso a dar autógrafos a colegas de trabalho. Não sou melhor nem pior do que ninguém. Não sou mais atriz, nem melhor atriz que nenhum de vocês, apenas sou mais conhecida e tive mais oportunidades”. O aluno ouviu e ainda não satisfeito externou: “Mas eu não sou seu colega ainda, sou apenas um estudante de teatro”. E ela retrucou: “O fato de você ainda está estudando não o faz ser futuro colega, mas o faz colega desde já, afinal, quem já tem a profissão também continua sendo estudante”.

PS.²: Não quero que entendam que isso é uma crítica à OAB em si, nem a ninguém em específico, só quero ter a chance de criar um verdadeiro debate sobre o tema. Que o sol possa brilhar para todos e não só para uns.

PS.³: Nem vou entrar em vários outros detalhes que acho deploráveis sobre o assunto. Só para constar um, o Presindente de uma Seccional da OAB que cria um artigo defendendo o Exame de Ordem. Artifo este em que o mesmo diz que a OAB é uma autarquia. Certamente o douto Presidente sabe mais do que os que foram reprovados e tem conhecimento da ADIN 3026 em que o STF decidiu que a OAB não é autarquia, e, por consequência, não pertence à Administração Direta ou Indireta. A OAB é uma personalidade jurídica sui generis que exerce um serviço público indispensável para a sociedade e para a justiça. Não relatarei o nome do presidente da seccional nem o artigo, mas está no próprio sítio da OAB Federal e é deste ano. Talvez tenha sido apenas o esquecimento por parte do Presidente da decisão de 2006 (coisa que o candidato ao Exame não tem o luxo de ter, esquecer de algo durante a prova).
Falo isso por ter ficado revoltado com o número de artigos criados diariamente em defesa do Exame quando fora admitida repercussão geral no STF e qua há a possibilidade de extinguí-lo. Se é inonstitucional ou não o STF vai dizer e pronto. E outros criados em favor da extinção. Mas como quem contra eles não podem, aqui estou eu me juntando e escrevendo sobre o tema (pausa para os risos).

Para aqueles que não sabiam ainda que a OAB não é autarquia e queiram ler a ementa e o Acórdão, segue o link com pdf: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=363283

Espero comentários.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Faltam 1000 dias para a Copa do Mundo no Brasil


Hoje, 16 de setembro de 2011, é o marco da contagem regressiva para a Copa do Mundo de 2014 que começará no dia 12 de junho de 2014 (numa quinta-feira, coisa rara. Normalmente a FIFA marca a estreia para uma sexta-feira, porém, por ser uma sexta-feira 13. Talvez seja superstição da FIFA). Como todos sabem, a Copa do Mundo será realizada no Brasil.

Mas... e daí? A Copa será realizada no “país do futebol”. Mas quem foi que disse que o Brasil tem condições de sediar um evento esportivo de tão monta?

Até o momento somente os estádios de futebol estão dentro do cronômetro (exceto os estádios de São Paulo e Natal). A Nova Arena Fonte Nova tem expectativa de ser entregue em fevereiro ou março de 2013, embora o cronômetro real marque a entrega para dezembro de 2012 (assim como todos os outros estádios). Porém, Copa do Mundo se resume aos estádios? A resposta é negativa.

Estamos a pouco mais de 2 anos da estreia e vários problemas não foram resolvidos. Alguns já se têm notícias de que não serão solucionados em tempo hábil. A mobilidade urbana terrestre está em meio ao caos em praticamente todas as cidades que sediarão a Copa. Salvador está em tempo de parar com tanto engarrafamento. São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte ainda mais. Nem Brasília se salva. Em Salvador pretende-se criar um metrô que leva da Paralela à cidade vizinha, Lauro de Freitas. Logo a cidade que há mais de uma década tenta construir um metrô e com tantas notícias de corrupção. Ainda há previsão de inauguração em novembro de apenas 6 km, quando o projeto original era de no mínimo 36 km. Quem acredita que isso saia do papel? Quanto mais será usurpado dos cofres públicos?

Outro problema que assola o país é a mobilidade urbana aérea. Quem confia nas construções e em soluções para o caos aéreo existente no Brasil há anos? Acho que ninguém confia, nem mesmo os responsáveis pelo poder administrativo e político. Várias são as razões, entre elas as licitações demoradas, a burocracia, a corrupção, a falta de organização, entre outros problemas.

O sistema de hotelarias também preocupa. Será que estão preparados para recepcionar os turistas que virão ao país? Preparação de pessoal tem um custo, e atualmente não está barato. Muitos dos hotéis ainda não estão capacitando seus agentes para um bom atendimento ao público. Postergar ainda mais pode prejudicar na manutenção dos turistas e na imagem das cidades sedes. Outro questionamento é acerca da estrutura dos hotéis, pousadas e afins. A maioria não dispõe de estrutura adequada e atualmente estão mais preocupados com a venda de edifícios do que a preparação para hospedagem em si. Tal assunto dará um alto índice de inflação imobiliária.

Mas o fator que mais preocupa é a quantia a ser utilizada para a realização do evento. Claro que a preocupação é relativa ao quanto de dinheiro público. Estima-se que gastem o valor equivalente à construção de 30 hospitais. Isso mesmo, 30 hospitais. E como anda saúde dos brasileiros? Numa franca decadência. Hospitais em ruínas, profissionais despreparados e desqualificados, falta de profissionais nas mais variadas áreas (pediatria está prestes a deixar de existir). Imaginem que a construção de tudo para o evento retira dinheiro que deveria ser investido na saúde. E se houver uma epidemia justamente nesta época? Provavelmente o país não estará preparado.

Educação é outro ponto que perde dinheiro nisso. Como estará a educação da sociedade para receber os turistas? Provavelmente uma catástrofe (já que estamos “no fundo do poço”). É só olharmos como anda atualmente a educação e que em dois anos não mudará muita coisa. Quase nenhuma escola pública do país sequer fora aprovada no ENEM.

E a segurança? Convivemos com o noticiário diário em que mais se demonstra violência que quaisquer outras notícias. Mais da metade dos boletins informativos jornalísticos transmitem a violência, especialmente os jornais que vivem do sensacionalismo. Se a segurança é insuficiente para salvaguardar os direitos dos cidadãos brasileiros, como podemos crer numa segurança para os cidadãos e os milhares de turistas que devem vir ao Brasil? A situação é crítica.

Agora o que há de revoltar a população (ao menos deveríamos nos revoltar) é como todo esse dinheiro está sendo utilizado e como pretende ser utilizado daqui em diante. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDCP) foi criado para flexibilizar as regras de licitações para obras da Copa do Mundo e para as Olimpíadas de 2016 (que acontecerão no Rio de Janeiro).

Tal RDCP foi instituído pela Lei 12.462/2011 (aprovando a Medida Provisória 52/2011). A lei há de ser contestada pela quebras de regras das licitações (utilizadas pelo Poder Público para contratar com o privado). Tal lei busca assegurar uma igualdade de competição, transparência, moralidade, probidade, entre outros princípios constitucionais/administrativos, excepcionalmente elencados no art. 37 e seguintes da Constituição.

Não seguindo a íntegra da Lei 8.666/93 o dano ao erário pode ser enorme, como de fato já ocorre mesmo seguindo à burocracia existente na lei. Além do dano ao patrimônio público, o meio ambiente pode sair prejudicado com a aceitação da lei que instituiu o RDCP.

Por tudo isso (e muito mais) é que o Procurador-Geral da República, o Senhor Roberto Gurgel, enviou ao Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar para derrubar a Lei 12.462/2011, diante da prerrogativa dos artigos 102, I, “a” e “p”, e 103, IV da Constituição Federal, e da Lei 9.689/1999.

Vocês acham mesmo uma boa a realização da Copa do Mundo no Brasil? É melhor gastar tanto dinheiro público em construção de estádios e outras coisas em detrimento das que realmente interessam aos brasileiros, como saúde, educação, segurança, previdência e etc.?

Sendo muito sincero. Gosto muito do futebol, mas tinha a preferência em construções de hospitais, escolas e capacitação de pessoas para essas áreas e para segurança. A única coisa que poderemos aproveitar de verdade (se é que farão), será a construção das estradas ou vias públicas terrestres.

Por mais que reconheça que o sistema legal de licitações seja extremamente burocrático, este meio ainda evita maiores prejuízos à nossa população, evita que a corrupção seja maior, entre outros problemas.

http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_pdfs/ADI%204655_rdc_copa.pdf  (para aqueles que tiverem interesse em ver a peça da ADIN)

sábado, 10 de setembro de 2011

A inconstitucionaliade do tratamento dado a união estável nas sucessões


A INCONSTITUCIONALIDADE DO TRATAMENTO DADO À UNIÃO ESTÁVEL NA SUCESSÃO


Está em trâmite no Superior Tribunal de Justiça (STJ) um Recurso Especial com argüição de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil (CC), que versa sobre a sucessão nas famílias instituídas por união estável. O tema me chamou a atenção por ter sido o mesmo da monografia defendida para conclusão da graduação em Direito. (STJ, Arguição de Inconstitucionalidade no processo eletrônico REsp. 1.135.354 / PB – Número de Registro 2009/0160051-5, Ministro relator Luis Felipe Salomão).

Quando tive o pensamento de escrever acerca do tema, a unanimidade dos professores da faculdade era contrária ao meu pensamento, mesmo assim dois professores aceitaram o desafio em orientar-me, embora mostrando alguns pontos na tentativa de me convencer da mera constitucionalidade do dispositivo. Porém, há discordância doutrinária e jurisprudencial do tratamento diferenciado da união estável e do casamento para efeitos da sucessão hereditária.

Como volta a baila o tema, sentir-me na necessidade de externar a minha humilde opinião, da qual já se tem um voto favorável, a do Ministro Relator Luis Felipe Salomão. A última notícia é a de que o processo encontra-se interrompido devido ao pedido de vistas do Ministro Cesar Asfor Rocha (BRASIL, 2011).

Um ponto interessante a ser dito é que a ação só poderá julgar acerca dos incisos III e IV do art. 1.790 CC. O motivo disto é que em sede de controle de inconstitucionalidade incidental, deve ter atenção exclusivamente ao caso concreto, não podendo ultrapassar os limites do que se pretende na ação. No caso em tela a ação versa sobre a volta dos parentes colaterais à sucessão do de cujus, assim como da totalidade da herança, em não havendo “parentes suscetíveis” se atrelar ao caput ou não do dispositivo legal.

Dito sobre o processo, faz mister a transcrição do dispositivo cível:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. (BRASIL, 2002).

Necessária também a transcrição do artigo a qual se requer a comparação e equiparação das famílias:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.


Primeiramente, vale salientar da existência de alguns princípios atinentes a seara familiar e sucessória, tais como: princípio da igualdade e respeito à diferença (entre as pessoas e entre as entidades familiares), princípio da liberdade (inclusive na escolha de entidade familiar que queiram conviver), princípio da dignidade da pessoa humana, princípio do pluralismo das entidades familiares, princípio da afetividade, princípio da razoabilidade, princípio da proporcionalidade, entre outros.

O Ministro relator, em primeiro plano, destaca a falta de técnica legislativa logo no caput do art. 1.790 CC, visto que só quem “participa da sucessão” é “herdeiro”. Aqui me utilizo a devida vênia para ressaltar um ponto, em tese isto é verdade, mas há um caso específico em que o Poder Público não é herdeiro, mas poderá entrar na sucessão. Trata-se da herança  vacante e da herança jacente, por consequência.

Ainda com relação ao artigo, o Ministro relator é categórico em afirmar que a topologia está inadequada, pois o dispositivo legal encontra-se em local impróprio, não tendo nada a ver com as disposições gerais em matéria sucessória. Neste mesmo sentido encontra-se Cahali (2007, p. 180-181), que leciona que o local mais apropriado a tecer sobre o assunto seria o da vocação hereditária, já que interfere na ordem das sucessões. No mesmo sentido Hironaka (2010, p. 58-59), que ainda informa que a má colocação do referido dispositivo não coaduna nem mesmo com a estrutura do próprio Código Civil.

Em caráter analítico, o Código Civil de 2002 derrogou alguns dispositivos das Leis nº 8.971, de 29 de dezembro de 1994 e nº 9.278, de 10 de maio de 1996, ambas disciplinando o instituto da união estável e co-relacionados. Nestas derrogações, alguns autores teceram verdadeiras críticas, tais como Dantas Júnior (2004, p. 581-582), haja vista o “inaceitável retrocesso à legislação anterior”.

Na ocasião da monografia, ainda por desconhecimento de alguns pontos do mundo jurídico, não me atentei para o que o Ministro relator conduziu acerca deste retrocesso. Eis que se trata de um retrocesso em matéria de direito fundamental. Muito bem lembrado pelo Ministro sobre o efeito cliquet, também conhecido como princípio da vedação do retrocesso em matéria de direitos fundamentais (ou mais adequadamente, em matéria de direitos humanos, que não se confunde, nem se resume aos direitos fundamentais).

No tocante a comparação entre a sucessão dos companheiros em relação à dos casados, segundo a doutrina majoritária, quem participa da meação não herda (isso serve apenas para os casados). Porém, na união estável, como a parte em que o companheiro pode herdar está atrelada aos bens adquiridos a título onerosos na vigência da união, este teria direito à meação e também herdaria. O que, analisando uma situação idêntica com cônjuges, quem vive em união estável teria vantagem quando só há patrimônio comum.

Mesmo a decisão tendo que se ater ao caput e aos incisos III e IV do artigo 1.790 CC, fora relatado no voto do Ministro relator a incongruência dos incisos I e II que versam da forma em que o companheiro ou a companheira herdará em concorrência com os filhos e descendentes do de cujus.

Neste ponte vale a transcrição do voto do Ministro Relator Luis Felipe Salomão:

Indaga-se da legitimidade da diferenciação do quinhão que tocaria ao companheiro, a depender se concorrente com filhos comuns do casal ou com filhos unicamente do de cujus (art. 1.790, incisos I e II). Concorrendo com filhos comuns o companheiro terá direito à quota equivalente a que fizer jus o filho (inciso I); “se concorrer com descendentes só do autor da herança tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles” (inciso II). Não há solução dada pelo legislador, todavia, à hipótese de existirem filhos comuns do casal e exclusivos do autor da herança. (BRASIL, 2011, p. 4).

Na tentativa de solucionar o problema, o relator transcreve a aprovação do enunciado da IV Jornada de Direito Civil:

Enunciado: Na hipótese de o companheiro sobrevivente concorrer com filhos comuns (inc. I) e descendentes somente do de cujus (inc. II), deve-se aplicar o disposto no inc. I, dividindo-se igualmente a herança.
Justificativa: Diante do princípio da igualdade entre os filhos, não se pode conceber sejam estabelecidos quinhões diferentes numa mesma partilha em que concorrem tanto os filhos comuns do companheiro sobrevivente como os descendentes só do autor da herança. Entendimento contrário faria os filhos exclusivos do autor da herança tivessem quinhão maior dos que os filhos também do companheiro sobrevivente. (BRASIL, 2011, p. 5, grifo do autor).

Primeiro o leitor deve reparar num ponto estranho. No inciso I o legislador fala em filhos, já no inciso II fala em descendentes (aqui exclusivos do falecido). Vale salientar que em se tratando de descendentes, os mais próximos excluem os mais remotos, salvo direito de representação (artigo 1.833 CC). Logo, só haveria concorrência, em tese, entre os filhos do falecido, sejam exclusivos ou comuns. Todavia, há de se notar que utilizar apenas a palavra filhos no inciso I gera divergência doutrinárias, das quais tem defensores que acham que se forem netos concorrerão pelo inciso III. Algo que também deve ser refutado com a inconstitucionalidade por tratamento diferenciado. Há de se entender que a utilização da palavra “filhos” foi uma falha técnica legislativa (GOMES, 2006, p. 67-68).

Não pode ser admitida a diferenciação dos filhos diante do texto constitucional, razão pela qual a jurisprudência vem dando razão ao Enunciado da IV Jornada de Direito Civil.

Agora se fala do que realmente a decisão em si pode gerar efeitos, relacionado aos incisos III e IV do artigo 1.790 do Código Civil. No casamento, quando não há descendentes, o cônjuge concorre com ascendentes. Já na união estável, não havendo descendentes o legislador impôs a regra de concorrer com qualquer outro parente suscetível. Pela regra da ordem de vocação hereditária, se vislumbra a mesma falha técnica do legislador, quem concorre primeiro são os ascendentes, para depois os colaterais. Não há como pretender a concorrência de companheiro com ascendentes e parentes colaterais ao mesmo tempo.

Todavia, aqui há o retrocesso com as leis anteriores. Na égide da lei anterior, que regia acerca da sucessão dos companheiros, na falta de ascendentes e descendentes, o companheiro herdaria a totalidade do patrimônio. Agora, segundo o dispositivo do Código Civil, deve concorrer com os herdeiros colaterais, sem nenhum tipo de diferença, o que vale dizer que concorrerão com primos, tios, e outros (sempre obedecendo a ordem de vocação hereditária). É de se imaginar que o companheiro herdará apenas um terço do que ajudou a construir em vivência com o de cujus, valendo-se apenas da regra que parente suscetíveis são os até o quarto grau.

Neste trecho o Ministro relator aduz a 3 pensamentos:

1 – Não há distinção entre o casamento e a união estável, ambas possuem os mesmos direitos;
2 – Mesmo que pudesse haver a distinção entre os institutos, ofenderia a dignidade da pessoa humana chamar parentes distantes a concorrer com quem ajudou a construir o patrimônio, violaria o direito à herança e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade;
3 – A aplicação do princípio da vedação do retrocesso em matéria de direitos fundamentais (efeito cliquet), não podendo o Código Civil retroagir perante a Lei 8.971/94.

Neste ínterim, o Ministro relator vota pela inconstitucionalidade do inciso III do dispositivo legal, e, por conseguinte, o inciso IV (na falta de outros parentes suscetíveis).

Ainda faltou vislumbrar acerca de outra divergência doutrinária. Em não havendo outros parentes suscetíveis, o companheiro herdaria a totalidade do patrimônio. Mas, de qual patrimônio? Do patrimônio relacionado apenas ao que adquiriram na constância da união a título oneroso? Ou da totalidade do patrimônio, seja a título oneroso ou gratuito, seja adquiridos na constância ou não da união?

Para Cahali (2007, p. 182-183) a herança está atrelada ao que dispõe o caput, limitando apenas aos bens adquiridos de forma onerosa durante a união. Logo, os bens particulares do de cujus serão conferidos ao Município, ao Distrito Federal ou a União, dependendo da localidade dos bens. Sendo assim, nas palavras do autor, há a concorrência do companheiro com o Poder Público. Este também é o entendimento de Zeno Veloso ([entre 2003 e 2008] apud DINIZ, 2010, p. 149-150).

Contrariamente, Gomes (2006, p. 68) afirma que se deve dar ao companheiro a totalidade do patrimônio deixado pelo falecido, seja a título oneroso ou não, adquirido ou não na constância da união estável, pois esta é a prerrogativa imposta no art. 1.844 do Código Civil, que dispõe acerca da herança jacente somente quando não existir cônjuge, companheiro ou qualquer parente sucessível. Dantas Júnior (2004, p. 604), em sua deixa, prefere acreditar que houve falta de técnica do legislador ordinário. No mais ele coaduna com Gomes ao tratar do art. 1.844 do Código Civil. No mesmo sentido aduz Diniz (2010. p. 149-150), que ainda preleciona a não possibilidade de concorrência do companheiro sobrevivente com as entidades públicas pelo fato deles serem apenas herdeiros sui generis.

Pelo que se dá a entender do voto do Ministro Relator da Corte Especial, o tratamento deve ser o mesmo dado aos cônjuges. Não havendo descendentes, nem ascendentes, cabe ao companheiro o patrimônio total. Não tendo este patrimônio ligação apenas com o auferido a título oneroso na constância da união.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Mesmo a contragosto dos professores, hoje está nítida que ao menos é passível de discussão a inconstitucionalidade do tratamento diferenciado da união estável e do casamento em relação aos direitos sucessórios. Isto se dá pela falta de hierarquia das entidades familiares, preceituando os princípios da afetividade, liberdade de escolha em qual entidade familiar queiram conviver, igualdade das entidades familiares, entre outros princípios.

Não se pode haver diferenciação entre as entidades familiares a ponto de dar extremas vantagens em uma forma de convivência em detrimento de outras, como no caso de companheiros que só tenham patrimônio em comum, que levam vantagem aos casados na mesma situação, ou de cônjuges que não concorrem com colaterais e na união deveriam. Ao contrário, os direitos sucessórios dos companheiros devem ser o mesmo dado aos casados.

Em se tratando do direito de familiar ser incluso nos Direitos Humanos, não se pode haver retrocesso dos direitos adquiridos pela sociedade. Com isso, o Código Civil não poderia retroagir face a legislação anterior, Lei 8.971/94, aplicando-se, mesmo que de forma, ainda, incidental, a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil em sua integralidade, seja pela diferenciação dos filhos, seja pelo tratamento diferenciado dos institutos familiares.


REFERÊNCIAS


BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: ´09 set. 2011.


______. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1.135.354 / PB. Requerente: Maria Jaydeth Miranda. Requerido: Onaldo Lins de Luna – Espólio. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Distrito Federal, 19 ago. 2011. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=102903>. Acesso em: 09 set. 2011.

______. ______. Voto do Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Distrito Federal, 19 ago. 2011. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=15725302&sReg=200901600515&sData=20110602&sTipo=68&formato=PDF>. Acesso em: 10 set. 2011.



CAHALI, Francisco José. Sucessão decorrente do casamento e da união estável. In: CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (Org.). Direito das sucessões. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 161-205.


DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Sucessão no casamento e na união estável. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Org.). Temas atuais de Direito e Processo de Família. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 535-613.


DINIZ, Maria Helena.Curso de Direito Civil brasileiro: Direito das Sucessões. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 6.


GOMES, Orlando. Sucessões. 4. ed. atual. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 2008.


HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das sucessões: concorrência do companheiro e do cônjuge, na sucessão dos descendentes. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Família e responsabilidade: teoria e prática do Direito de Família. Porto Alegre: IBDFAM; Magister, 2010. p. 55-64.

 _______________________________________________________________________________

PS¹.: Peço aqui desculpas por utilizar-me da primeira pessoa. Sei que em textos acadêmicos, mesmo que não oficiais, a utilização da primeira pessoa (seja no singular ou no plural) não deve ser utilizada, mas dessa vez é questão de cunho pessoal mesmo. Não tive como conter-me sobre o assunto que defendi na banca da faculdade diante de pessoas que pensavam o contrário.

PS².: Espero comentários e um debate jurídico propriamente dito.